Onde adoecemos

Onde adoecemos

 

 

 

Winnicott revolucionou a patologia psicanalítica ao dizer, em 1948, que a esquizofrenia é uma espécie de distúrbio que resulta de deficiência ambiental. Tradicionalmente, as doenças mentais são vistas na psicanálise como resultado de conflitos intrapsíquicos.

Para caracterizar a posição de Freud, que permaneceu hesitante e inacabada, começarei pelas formulações dos anos 1920. Freud pensa as principais patologias mentais em termos de sujeição do eu, do Ego da metapsicologia, a seus três senhores implacáveis:

1) os instintos de fome e de amor sexual – da vida instintual de cada um de nós, cantada pelos poetas e estudada pelos biólogos –, que, na metapsicologia, são chamados conjuntamente de Id;

2) a realidade externa ou, metapsicologicamente falando, a Necessidade, a Ananque, na mitologia grega, personificação do destino inalterável, mãe das Moiras;

3) a razão, cujo nome especulativo é Deus Logos (o dos poetas, teólogos e filósofos). Enquanto, na neurose, o Ego, na sua sujeição à Necessidade, isto é, ao princípio de realidade, reprime um pedaço do Id e seus objetos, na psicose, esse mesmo Ego, serviçal do Id, obedecendo ao princípio de prazer, retrai-se de um pedaço inteiro do campo da Necessidade reprimido.

Nos dois casos, o despedaçamento intrapsíquico implica perda de objetos, acarretando limitações à realização do programa do princípio do prazer, que governa o Id. O Id, pois, se rebela e o drama intrapsíquico se resolve da seguinte maneira.

Na neurose, o Id consegue satisfação, ainda que parcial, nos sintomas neuróticos, que remetem – como o brincar das crianças, diz Freud –, a objetos do desejo instintual perdidos pela repressão – pontos de fixação. Estes são habitualmente achados no caminho da regressão a uma realidade primitiva, fantasiada, anterior à elaboração cultural, mas mais satisfatória que a situação atual.

Na psicose, o Id força também a criação de uma realidade externa fantasiada, mas aqui o processo de fantasia não parece tirar a sua matéria do estoque do passado arcaico satisfatório, sendo, por isso mesmo, uma solução falha. Até aí, o Deus Logos ainda não entrou em cena no teatro das servidões do eu/Ego. Ele entrará em campo na hora do tratamento, fazendo-se representar pelo terapeuta freudiano. Este vai quebrar o encanto dos pontos de fixação decifrando seus segredos, frustrar a satisfação neurótica e facilitar a aceitação dessa perda (a castração) pela sublimação – propondo ao Id, agora já chamado de libido e liberado de fixações, objetos de valor cultural mais elevado – parte da tradição cultural compartilhada – e satisfações mais finas que os prazeres primitivos e grosseiros.

Em 1930, em O mal-estar na cultura, Freud fez uma apresentação, já clássica, de outros atores metapsicológicos responsáveis pelos processos de despedaçamento e recomposição da psique individual e da vida da espécie humana: os instintos de Destruição (Morte, Tânatos, Diabo) e de Amor (Vida, Eros, Deus), o termo “Amor” servindo de nome especulativo para os instintos de ligação objetal, fome e sexo. A luta especulada entre esses instintos, não apenas microcósmica, no homem, mas também macrocósmica, determina o conteúdo experienciado da vida humana em geral, isto é, o desenvolvimento amoroso (sexual) e agressivo (fome, apetites) do indivíduo e da sociedade (colaboração, guerras), o Eros tendo como aliado o Deus Logos, que inspira o programa de controle cultural desse desenvolvimento por meio de sublimação e, mais significativamente ainda, por repressão.

Em 1946, Melanie Klein valorizou muito essa versão do drama intrapsíquico. Destruição e Amor disputam entre si nossas relações objetais desde o início da vida, o primeiro objeto sendo o seio da mãe. Essa luta entre os senhores da nossa vida interna, que revela a ambivalência constitutiva, e não desenvolvida, da natureza humana, nos ameaça, amedronta e angustia; é uma situação contra a qual o eu tem que se defender como pode, lançando mão dos mecanismos mentais a sua disposição, tais como cisão – do seio e de si mesmo, de impulsos, de emoções –, projeção, denegação, idealização etc. Nos primeiros meses de vida, o bebê está em uma posição paranoide-esquizoide determinada por sua própria constituição, sendo, portanto, um perseguido-cindido por destino.

Voltemos a Winnicott de 1948 e depois. A cisão, que deu o nome à esquizofrenia, não é um drama intrapsíquico decorrente da inevitável submissão do eu/Ego às três instâncias dominadoras. O conceito de eu é inseparável, diz Winnicott, do conceito de pessoa com autonomia; os instintos não integrados na pessoa podem ser ignorados – o princípio de prazer não vale para a pessoa –; a imposição da obediência à realidade externa, o princípio de realidade cru e nu, é uma afronta pessoal; a razão humana não fala como um Deus. A cisão tampouco se explica pela luta entre Eros e Tânatos. Esse recurso à “bruxa metapsicologia” no estudo da vida humana talvez tenha sido a maior mancada (blunder) de Freud, diz Winnicott, sendo, no essencial, uma tentativa, compartilhada por Klein, de reafirmar o pecado original. O dualismo dos instintos deve ser abandonado. Esse tipo de teorização propõe uma falsa teoria da agressividade, revela o desconhecimento por Freud do impulso amoroso primitivo e explica por que ele negligenciou o surgimento, no desenvolvimento emocional primitivo, do amor, do ódio e da ambivalência. Winnicott lamenta ainda o fato de Klein ter feito tanto esforço para acomodar essa “mitologia científica” (como foi chamada por Freud) na sua teoria da doença mental, tão rica sob vários aspectos, exceto pelo conceito de posição paranoide-esquizoide, que não é adequado para descrever o início da vida humana.

A metapsicologia foi abandonada, o paradigma da psicanálise mudou. Como ficamos agora? A esquizofrenia é uma perturbação do processo de amadurecimento de cada indivíduo – do “não dividido”, nome winnicottiano para o ser humano – nos estágios iniciais da vida, cuja etiologia é um certo padrão de falhas ambientais: a privação. Em outras palavras, é distorção, bloqueio ou mesmo o reverso da integração. A partir daí, Winnicott generalizou e, dessa forma, criou toda uma nova patologia, com uma nova classificação de doenças psíquicas, agora já entendidas explicitamente como distúrbios maturacionais. Toda forma de psicose e toda doença psíquica, em qualquer estágio da vida, deve ser diagnosticada de forma a observar a sua maturidade como falta de integração de acordo com a idade, isto é, como imaturidade, cuja etiologia está na falta de provisão necessitada. Adoecemos nas mesmas situações, nos mesmos lugares em que vivemos, quando não temos condições ambientais para começar ou continuar a viver espontaneamente, de forma criativa. Quais são então esses lugares?

O primeiro é o colo da mãe. No amadurecimento saudável, o bebê tem nesse colo a oportunidade de identificação primária com a mãe objeto/ambiente. Essa é a condição para que o bebê possa realizar experiências de existir, de ser um indíviduo, unitário, centro onipotente de operações espontâneas, absolutamente criativas; ele integra-se no espaço e tempo subjetivos, aloja-se no corpo, torna-se real, um existente em contato com objetos que cria. Se a mãe não estiver lá para tanto, se não oferecer o setting necessário, o bebê não fica frustrado, neurótico, ou paranoide ameaçado pela pulsão de destruição, mas chega à beira de aniquilamento, correndo o perigo de perder tudo, incluído o indivíduo primário. E, para se defender dessa agonia propriamente impensável, desenvolve defesas psicóticas: promove sua própria desintegração; tenta integração por autossustentação e auto asseguramento, erigindo um falso si-mesmo; despersonaliza-se (corta o alojamento no corpo que não sabe como usar); busca realidade na introversão; fecha-se, de forma autista, para o mundo, ficando invulnerável. Na terapia, regride à dependência profunda.

Eis um exemplo. Um menino de 5 anos, com aparente deficiência mental, depois de testar o ambiente por alguns meses, sentou-se no colo de Winnicott, enfiou-se dentro do seu paletó e escorregou para o chão. Repetiu várias vezes esse comportamento. Em seguida, mostrou forte necessidade de comer mel. Ele havia nascido e estava com fome. Winnicott lhe deu o que tinha, melaço com o óleo de fígado de bacalhau, que ele engoliu vorazmente. Nas sessões seguintes, fazia poças de saliva esperando Winnicott abrir a porta. Seguiu-se um lento, mas firme desenvolvimento. Winnicott diagnosticou esse menino como um caso de esquizofrenia infantil, resultado do fracasso do seu encontro inicial com o mundo, corrigido pelo próprio menino, a partir de uma necessidade pessoal, quando ajudado por um colo melhor que o da mãe, providenciado por Winnicott.

Seria possível prosseguir enumerando e ilustrando clinicamente distúrbios maturacionais de todos os estágios subsequentes que acontecem em lugares cada vez mais amplos e sofisticados. Limitar-me-ei apenas a observar que um adulto pode não ter saúde suficiente para envelhecer e morrer. Ele pode não ter desenvolvido um si-mesmo maduro o bastante para finalmente se permitir fechar o tempo-espaço potencial, o lugar onde viveu até então, sacrificar a espontaneidade e morrer sua morte natural, que é o último selo da saúde.

 

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Zeljko Loparic é filósofo, professor titular aposentado da Unicamp, fundador, com Elsa Oliveira Dias, do Instituto Winnicott e da International Winnicott Association. Publicou numerosos trabalhos sobre Kant, Heidegger e Winnicott. A totalidade da sua produção intelectual encontra-se disponível online em Acervo Loparic.

Uma parceria com o Instituto Winnicott

 

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