Oficina Literária

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SENHAS

O pior eram as fotos pelas paredes da casa. Depois de recolhidos os presentes, em diferentes gavetas, os bibelôs a enfeitar cada canto de cada estante e mesa e ainda depois de dar sumiço às cartas, cartões, perfuminhos. Depois disto, o pior era parar em frente a cada parede e tirar o retrato do prego. Desdobrando as pequenas hastes que sustentavam o fundo de papelão que segurava a foto, vinha então, a foto. Na palma.

Pela casa inteira os retratos pendurados pelas paredes. Mania de fotografia. Até no banheiro. No escritório, um painel metálico segurava em ímãs uma porção deles. A viacrucis, vagarosa, de sala em sala, de quarto em quarto, retirando meticulosa e não raivosamente cada um dos retratos pendurados nas paredes, postados em criados-mudos e aparadores. Ele sabia que era a parte mais dolorida.

Na conversa, o único problema era encontrar as palavras. As que doessem menos, significassem mais e em menor quantidade. O que tinha para ser dito. O choro, inevitável. Abraço depois, coisa de cinema. O vazio e a sensação de que faltava, para encerrar magistral. Algo.

Não mais. Pela burocracia, a mudança de senhas. O nome dela para acessar o computador de casa, seu aniversário em duas ou três contas de banco. O aniversário de namoro em pelo menos uma senha de e-mail. A lembrança se arrasta solene enquanto afasta-se da casa. Mais uma semana, ao menos, para se desvincular. Burocraticamente.

Ela vai provavelmente se livrar dos ursinhos. Queimar as cartas, os poemas? E os retratos, na estante dos pais? Não. Uma caixa, provavelmente. De sapato, até. Embaixo da cama, que seja. Para mais tarde, bem mais tarde. Quando com os filhos. Algum filho sempre acha. E vê que a mãe teve outro namorado. Podia ter sido o pai.

Não tinha por que rancor. Fora sincero. Nunca a traíra. Era o fim, e só. Arrastar em demasia seria engano. Aí sim, a mentira. Depois de um tempo, por que tinha que terminar. Só.

Telefones nas agendas, fotos arquivadas no computador. Mais retratos para se livrar. Ainda falta tirar todos os de casa. A pior parte. Na parede, ficarão as manchas, o vazio do não retrato. Cansa. Senta, um retrato na mão. Festas com a boca cheia. Depois, ainda as senhas, mudar tudo. Os retratos, onde depois? Queimar? Não tinha por quê. Caixas e mais caixas para guardar. Precisaria mais do que ela. Cachorros e balões em retratos. O grande, da sala, ia ter que deixar atrás do guarda-roupa. Enorme. Pôster. Ia ter que assinar documentos no banco? Trocar pelo quê? Não lembrava de nada. Suplício que seria.

Malditas senhas. As fotos com chapéus de colonos. Sépia. Gostava de sépia. Era bonito ali. Ia gastar com quadros novos. O nome da mãe? Não, não ia lembrar. Melhor colocar o seu aniversário. Não, não pode. Era como começar tudo de novo. Organizar-se, tirar os retratos, sumir com os presentes, guardar as cartas. Longe. Bem longe, para não lembrar. Trabalho que é romper. Cansaço. Escuro, e os retratos, ainda. Amanhã continua. E mudar as senhas.

Amanhã.

Quem sabe, ela liga.

Alessandro Garcia é escritor e participou das coletâneas Ficção de Polpa (vol. 3, ?ed. Não) e Cenas de Oficina (Unidade Editorial), entre outras.

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