O último intérprete do Brasil

O último intérprete do Brasil
(Foto: Domínio Público)

Nosso maior pensador da economia, um dos verdadeiros intérpretes do Brasil, foi também nosso primeiro ministro da Cultura a merecer este título. Durante a Nova República, com a criação do Ministério da Cultura, Celso Furtado (1920-2004) voltava de um exílio que se estendera desde quando, na época das reformas que antecederam o Golpe de 1964, imaginou um plano arrojado para desenvolver o país alterando a nossa tradicional modernização excludente.

Se o golpe militar ceifou esse projeto, repondo a modernização conservadora, ele também lançou o pensador ao mundo, dentro do qual ele adquiriu ainda mais reputação e prestígio.

Era de se esperar que seu retorno ao país, em plena crise econômica legada pela falência do regime militar, o trouxesse de volta à sua atuação econômica desenvolvimentista e democrática. Mas não foi bem assim. O governo Sarney deixou que outros economistas menos célebres afundassem o que já estava naufragando. E o velho herói de nosso sonho de progresso justo recebeu uma função inesperada: criar as bases de um programa econômico para a cultura.

Dizer “programa econômico”, hoje, significaria falar apenas em números e cifras. Mas é de inteligência que estamos tratando aqui. E o livro Ensaios sobre a cultura e o ministério da cultura (Contraponto, 2012), que reúne ensaios e textos diversos escritos desde os anos 1970 até 2001, é uma joia para quem se interessa por cultura, por política, por economia e por aquilo que o Brasil é ou pode ser (de preferência tudo isso ao mesmo tempo).

Há duas maneiras de ler o livro, perfeitamente sintetizadas no título: uma nos leva a acompanhar Celso Furtado derivando suas teorias históricas e econômicas para o âmbito da cultura; outra nos apresenta os pressupostos e a defesa da Lei Sarney, de 1986, da qual ele foi o artífice, no contexto da redemocratização e daquilo que viria depois dela, especialmente a Lei Rouanet e até mesmo as tentativas de mudança de paradigmas tentadas em alguns momentos da gestão recente de Gilberto Gil/Juca Ferreira.

O livro conta com uma introdução precisa, bem escrita e apaixonada de Rosa Furtado. Em seguida, apresenta dois ensaios nos quais as virtudes do pensador das estruturas econômicas que busca abarcar também a dimensão da produção simbólica, em contexto nacional, são desenvolvidas (o ensaio “Que somos?” é das mais brilhantes peças escritas no Brasil sobre o assunto nada modesto).

Depois lemos uma coletânea de textos que desvendam os engenhos e as justificativas para a Lei Sarney e seus mecanismos de renúncia fiscal para a produção cultural. Na sessão seguinte, dois breves e profundos ensaios, escritos quando Furtado trabalhou na Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento, vinculada à Unesco e à ONU, depois de sair do ministério.

No final encontramos a parte menos brilhante da coletânea, seus ensaios e discursos escritos para a Academia Brasileira de Letras.

O livro traz ainda dois ótimos artigos que avaliam a experiência da gestão do economista na Cultura (escritos por Ângelo Santos e Fábio Magalhães) e mais duas entrevistas esclarecedoras, nas quais as ideias de “força criativa” e de síntese nacional são didaticamente expostas. Tudo isso no estilo direto e seco desse autor que é para o ensaísmo histórico o que João Cabral é para a poesia.

É fascinante ver o pensador relacionando e discutindo com propriedade tanto a arte do Renascimento italiano quanto o avanço tecnológico do Brasil colonial, a dependência econômica moderna e a ruptura modernista, as novas dependências no contexto globalizante e a relação entre cultura e tecnologia.

Basicamente, a teoria furtadiana da cultura se centra na teoria combinada (e modernista) de identidade nacional e de livre expressão criativa. Sua política cultural aponta para a ideia da substituição de importação no âmbito da produção simbólica e nas formas de se criar mecanismos para superar o desenvolvimento desigual dentro do campo cultural. Trata-se da Cepal pensando a expressão cultural do povo brasileiro. A Lei Sarney deveria ser o mecanismo real de aplicação dessas transformações.

Nesse sentido, a política cultural de Celso Furtado foi o último capítulo do sonho de ruptura vindo das melhores teorias da dependência. Mas, uma vez atuando em contexto de crise econômica e do acordo político que deveria embasar o salto do novo desenvolvimentismo, ela também funcionou como antessala das políticas neoliberais que seriam adotadas posteriormente, especialmente pelos ministros da Cultura de Collor, e demarcariam a passagem da Lei de Furtado para a Lei Rouanet. Ou seja, daquela que pensava a renúncia fiscal como parte de uma política de gestão do financiamento a fim de formar um fundo público aplicável às iniciativas não contempladas pelo mecenato privado, para aquela que transfere o financiamento e a decisão do que deve existir diretamente para os departamentos de marketing das grandes empresas renunciadoras.

Mas Celso Furtado não é culpado pelo que nos tornamos. O melhor é voltar a ouvi-lo: “em nossa época de intensa comercialização de todas as dimensões da vida social, o objetivo central de uma política cultural deveria ser a liberação das forças criativas da sociedade”. Esta é uma lição para aquilo que podemos vir a ser.

Francisco Alambert é professor de História Social da Arte e História Contemporânea na USP


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