O troco da professorinha
Minha primeira crônica publicada no Jornal Zero Hora no dia de hoje, domingo.
Diz-se por aí que a vida é auto-explicativa. Mas a professorinha sempre olhando o mundo como uma vasta coleção de objetos para estudo, não gostava de nada que fosse considerado verdade apenas por ser repetido.
Então, ela saiu de uma aula empolgante na escola particular de um bairro fino que lhe rendia de vez em quando aqueles trocados a mais com que podia ir ao cinema, comprar um livro ou um sapato novo. A aula era sobre a impensada noção de futuro.
Era tarde, não havia ônibus e, sem alternativa, seria dolorido pagar um táxi até o outro lado da cidade para chegar em casa e dormir poucas horas antes de sair cedo para um dia tenso na escola estadual. Ela andou até a avenida movimentada, esperou até que um táxi parou a uns vinte metros diante de uma construção semelhante a um templo dos que aparecem em filmes de terror. Apressou-se, um tanto em dúvida se seria um gesto acertado de sua parte. De dentro saiu um homem de meia idade,camisa preta e ar de cansado. Quem sabe o sacerdote da missa negra prestes a começar. Foi a ideia que passou por sua cabeça ao lado da hipótese mais plausível de que fosse apenas mais um deprimido procurando desesperadamente por vida espiritual.
Diante do lugar, homens de preto e feições cafuzas abriam todas as portas. Mesmo assustada ela perguntou se podia pegar o táxi enquanto o porteiro e o motorista trocavam um recibo e uma nota de cem reais.
Justamente por ser a curiosidade, como a esperança, gêmea do medo é que a moça tornou-se professora de filosofia. Quando o carro começava a andar ela perguntou sem respirar ao senhorzinho da direção:
– Moço, o que é aqui?
– Um “night club”, ele respondeu. Pra onde a senhorita vai?
– Que curioso, disse escondendo o susto. Pensei que fosse algum tipo de igreja. Vamos pra Vila Ipê 2, na rua do Bar da Gorda. Chegando perto eu explico.
– A cidade tá cheia deles, moça. Esse não é dos mais caros. Mesmo assim, eu ganho cem Reais a cada passageiro que deixo na porta. Levo dez por dia, pensa na média do meu salário… Sirvo todo mundo, prostitutas, empresários, políticos, traficantes. E finjo que não sei de nada, assim ganho confiança e belíssimas gorjetas. Faz três anos que não dependo do meu salário de professor de matemática aposentado… E riu enquanto estacionava diante da casinha simples.
Silêncio entre eles.
– Moço, eu também lhe daria uma bela gorjeta, mas como sou apenas professora, eu preciso do meu troco.
(19) Comentários
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ah… vida…
São Paulo? Já aconteceu igual comigo.
Verdade pura!
Muito bom. Parabéns pela escrita suave e real!
Interessante como o título nos faz criar expectativas.
Ao ler o título imaginei que a professorinha daria outro tipo de troco.
Assim como o título me sugeriu uma “leve vingança” a boate sugeriu uma igreja à professorinha.
Bjs querida!
Dar o troco é questão de sensibilidade. Valeu esse troco filosófico!
Bacana, mostra como a profissão de professor é desvalorizada neste país. Gostei da comparação com a igreja. Uma dúvida, esta crônica é autobiográfica?rs
Sim, Júnior, aconteceu comigo saindo um dia da Casa do Saber…
Crônica é bom demais… Gostei do ‘missa negra’ hehehe Você escreve regularmente para o Jornal Zero Hora?
Adoro crônicas assim, porque pra mim, foi a professorinha quem ‘deu o troco’. … rsrs
Beijos e saudades
A indiferença do homem do taxi, a sabedoria objetiva da professora
o silêncio é uma boa descarga às vezes…
mas o troco foi bem dado!
beijo, Flor!
muito bom saber do blog.
É impressionante como a vida noturna nos ajuda a ter idéias tão claras não? beijos!!
Nada como ser profissional voyeur, a inspiração para uma crônica pode vir quando menos se espera, numa noite sem pretensão após uma aulinha para os bacanas.
Adorei o blog, vou passar por aqui sempre que der.
bjs
Hahaha…. já sei que talvez eu venha a ser um eterno fud@#$@!… ;D
Abraço! 😉
FAZIA MUITO TEMPO QUE EU NÃO LIA UMA CRÔNICA. NOS IMPRESSOS, IMPOSSÍVEL PARA MIM. NO PC, ANDO USANDO UM “LUPA” DO WINDOWS, QUE AUMENTA BASTANTE AS COISAS. POR ISSO, AS PÁGINAS TRAVAM MUITO E E AS IMAGENS FICAM DESFORMES.
A SENSAÇÃO DE LER UMA CRÔNICA SEMPRE ME INTRIGA. TENHO UM SENTIMENTO DE REALIDADE COM IRREALIDADE E PARECE QUE A CRÔNICA É INTERROMPIDA, ASSIM COMO A VIDA O É. EU ME COLOCO NO LUGAR DE UM PERSONAGEM E TOMO OS POSSÍVEIS SENTIMENTOS DELE – OS QUE NÃO FORAM MENCIONADOS – PARA MIM. A ESTRANHEZA QUE SINTO SEMPRE ME FAZ PENSAR: É COMO SE EU INVADISSE UMA HISTÓRIA QUE NÃO É MINHA, MAS É PELA CATARSE.
BEIJOS, MARCIA! E MAIS COISAS ÓTIMAS COM ESSE NOVO TRABALHO.
Márcia,
Concordo com a Deborah de Mello: a professorinha é que deu o troco, pois mostrou que o mais importante não é a retribuição material, mas contribuir da melhor forma possível com a sociedade.
Abraço.
Celina
de quem é a cronica??
Como assim? Todos os textos são meus.