O triunfo da imaginação: uma leitura de ‘Nobel’, de Jacques Fux

O triunfo da imaginação: uma leitura de ‘Nobel’, de Jacques Fux
O escritor Jacques Fux, autor do romance 'Nobel', sobre o mecanismo da criação literária (Divulgação)

No oceano de picaretagem que cerca as ilhas desoladas que são os meios literário e acadêmico brasileiros, poucas noções (pois raras são aquelas que, hodiernamente, chegam a ser conceitos) navegam com tanta facilidade e são tão constrangedoras quanto a de “autoficção”. A coisa está ancorada em uma espécie de tautologia, pois qualquer aluno com distúrbio de déficit de atenção sabe, ou ao menos desconfia, que, conforme o célebre dito do poeta Manoel de Barros “ninguém foge do erro que é”.

Ora, todo e qualquer romance, por mais fantasioso que seja, em alguma medida, em algum nível, consciente e inconscientemente, desvela, evoca e/ou ficcionaliza aquele que o escreve, seja explícita, seja implicitamente. Por sorte, a imaginação de escritores como Luis S. Krausz (Deserto, Outro Lugar), Julián Fuks (A Resistência), Cristovão Tezza (O Filho Eterno) e Jacques Fux (Antiterapias, Brochadas e, agora, Nobel) transcende o teor abilolado daquela noção e, cada qual à sua maneira, alcança um entendimento do mundo ao redor, de si, do outro e, claro, do próprio processo de escrita ficcional. É sobre Nobel, romance mais recente de Fux, que discorrerei a seguir.

De certo modo, e grosso modo, a atividade da criação literária corresponde a uma espécie de diálogo fantasmagórico ou fantasmático: empurrado pelas sombras que o cercam e não raro o constituem, o escritor mergulha na “fosca turvação” da memória tanto do que vivenciou quanto do que leu. Estruturando seu romance como um hilário discurso de aceitação do Prêmio Nobel de Literatura, Fux trata justamente de expor o mecanismo interno do supracitado diálogo.

“Sim, desde muito jovem devoto a minha existência à literatura”, ele afirma logo no começo do livro, “à transfiguração desse meu eu, real e biográfico, em um eu ficcional e ventríloquo da memória e da obra dos outros”. Coerentemente, no decorrer do discurso-romance, o protagonista e narrador Fux tratará de passear pela memória e pelas obras alheias, instituindo um espaço de recriação e, às vezes, corrupção ficcional das idiossincrasias, manias, fofocas e anedotas envolvendo outros escritores agraciados (ou não) com o Nobel, como Mario Vargas Llosa, Derek Walcott, J. M. Coetzee, Franz Kafka, Yasunari Kawabata e Ernest Hemingway.

E é o incontornável impulso falseador de Fux (seja o narrador, seja o autor) que confere graça ao romance e o desloca para um âmbito reflexivo mais rico do que aquele em que estaria inserido se o enredo se ativesse ao mero prolongamento ou reiteração da piada que lhe serve de incipit (a premiação de Fux por “ter performado, falsificado e duplicado a narrativa dos escritores canônicos, transformando-a em sua perturbada obra”). Em outras palavras, para além do humor desbragado e das picuinhas, grandes ou pequenas, que pontuam o livro, é o poder imaginativo do autor que sustenta o que ele mesmo chamou (em uma entrevista concedida a mim para o blog da editora Record) de “cadeia intertextual”.

Nesse trânsito fantasmático ou comércio com fantasmas, o conto Um relatório para uma Academia, de Franz Kafka, talvez possa ser encarado como uma espécie de modelo, na falta de palavra melhor. Observe-se que o narrador de Nobel se equilibra sobre um fio tênue, e o faz sem rede de proteção: em seu discurso, ele ao mesmo tempo homenageia e degrada escritores e acadêmicos, investindo em uma digressão subversiva que ataca a pompa e a circunstância da premiação máxima sem, contudo, colocar-se fora dela ou sequer marginalmente.

De maneira similar, o macaco que narra o conto de Kafka afirma de forma categórica que jamais exigiu a liberdade, “nem naquela época nem hoje”. Também cito ao arrepio do contexto original: “A tranquilidade que conquistei no círculo dessas pessoas foi o que acima de tudo me impediu de qualquer tentativa de fuga”, pois o símio entende que “a saída não devia ser alcançada pela fuga”.

Do mesmo modo, no ponto mais alto do circo literário, o “nobelizado” Fux tampouco exige – ou nutre qualquer anseio por – liberdade. Muito pelo contrário, eu arrisco a dizer, pois o coração de sua sátira reside justamente não na denegação, mas, sim, na celebração desavergonhada (ainda que negativa, degradada e degradante) da pulsão ficcional que anima qualquer escritor que se preze. Um “viva ao plágio, às fraquezas e às depravações literárias”, portanto.

Na medida em que expõe seus pares e a si próprio, na medida em que adultera e corrompe detalhes e passagens das vidas e das obras de “seus” autores, na medida em que faz “colocações miseráveis, falsas e canalhas”, o protagonista de Nobel defende exata e paradoxalmente o lugar da ficção e reafirma o direito de todo escritor recriar(-se) pela via da fabulação. Não por acaso, a intenção declarada (“degradar a vida dos autores por intermédio de suas obras”) vem acompanhada por um apelo ou coisa que o valha: “Amaldiçoem-me, mas não retirem meu ouro”.

O “ouro” aí pode ser entendido como a premiação em si, é claro, mas também (e, no meu entender, sobretudo) como a liberdade de se ocupar de si e do outro por meio da literatura. Assim, por mais que sintamos “um prazer mórbido ao falar sobre o subterrâneo das pessoas”, o que é sublinhado pela leitura de Nobel é algo, por assim dizer, mais solar, a saber: o prazer nem um pouco mórbido e nada subterrâneo trazido pela invenção, preenchido pelo vigor imaginativo e alimentado pela saudável convulsão provocada pelos melhores ficcionistas e suas abençoadas deturpações.

Nesse espírito, a “mentira” é justamente o que é tido como “real” e “verdadeiro”, e o único repouso possível, o único refúgio da (nunca, jamais, antídoto para a) loucura está “nas asas da ficção”, pois é função do ficcionista “se livrar das amarras e das injustiças de seu tempo” ou aprofundar o entendimento que temos delas. O prêmio, em suma, tanto para quem produz quanto para quem lê, é a própria obra literária. Todo o resto não passa de teatro.


ANDRÉ DE LEONES é autor dos romances Eufrates (José Olympio) e Abaixo do Paraíso (Rocco), entre outros

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