O triunfo da beleza e da justiça

O triunfo da beleza e da justiça
O cineasta Glauber Rocha (Foto Américo Vermelho / Divulgação)

 

Às vésperas de se completarem os 30 anos de sua morte, Glauber Rocha volta a frequentar o noticiário não apenas ancorado no mito, mas, sobretudo, no reconhecimento conquistado por ele como artista libertário. Agora, grande parte de sua obra está enfim restaurada e acessível ao público que, até os anos 1990, só tinha uma vaga noção de sua linguagem revolucionária.

No princípio era o cinema, negociado com a mãe, Lúcia Rocha, que levava o menino Glauber à missa, sob a condição de que, em seguida, fossem à matinê no Cine Vitória, em Conquista. Depois veio o verbo: a Bíblia, com o tempo, ao lado de Shakespeare, revelar-se-ia fonte seminal de seus roteiros.

Gênio, visionário, polemista de plantão, Glauber Rocha lança mão do jornalismo para fazer “guerrilha de ocupação de mídia” e intervir no plano político a partir dos anos 1960, em Salvador, apropriando-se de espaços preciosos na imprensa local, desde a crônica policial, com a qual iniciou, até suplementos literários e colunas sociais.

São inúmeras as fotos do diretor, ao longo da vida, invariavelmente flagrado sem camisa, de cigarro no canto da boca e com dois dedos plugados na sua pequena Olympia branca. A câmera-olho dá lugar à máquina olho-metralhadora do repórter delirante.

Desde meados de 1957, quando cursava direito na Bahia, Glauber já revelava intimidade com o ofício: responsável pela paginação da revista Ângulos, ele se relacionava diretamente com os linotipistas, “provando” pessoalmente a tiragem de cada edição na gráfica da faculdade. A dimensão totalizante da autoria fazia com que Glauber, a exemplo de Mário Peixoto, redigisse até os próprios releases de seus filmes, como no caso de Terra em Transe, em que o texto oscila sem cerimônia entre a primeira e a terceira pessoa.

Como um dos mentores intelectuais da geração Mapa, que naquele mesmo ano reúne, no Colégio Central da Bahia, figuras como Calasans Neto, Fernando Rocha Peres e Paulo Gil Soares, Glauber (aos 18 anos de idade) dirige as Jogralescas (poemas encenados) e publica, na revista Mapa, seu ensaio inaugural sobre cinema, intitulado “O Western – uma Introdução ao Estudo do Gênero e do Herói”, antevendo a linguagem adotada mais tarde em Deus e o Diabo… e em O Dragão da Maldade… Antes da passagem marcante pelo Jornal do Brasil, migra do Jornal da Bahia (onde, como repórter policial, ensaia a mise-en-scène dos dramas cotidianos) para o Diário de Notícias, onde colabora na página Artes e Letras, que serve de suporte experimental para a posterior aventura carioca. Transitou também pelos seguintes veículos: O Momento (órgão oficial do Partido Comunista baiano), O Metropolitano (movimento estudantil), O Conquistense, O Pasquim (sintaxe livre, desbunde), A Tarde, Os Sete Dias, revista Visão, revista Senhor, Folha de S.Paulo, entre outros.

Repórter e cineasta

Na dupla jornada, o repórter impõe-se ao cineasta. Quando começa a colaborar, em 1961, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, Glauber realizara, até então, os curtas O Pátio (1958) e o inacabado Cruz na Praça (1959), mas já preparava as bases do projeto cinemanovista, revezando a máquina de escrever com a câmera na mão e uma ideia fixa na cabeça.

Avesso a esquematismos narrativos e ideológicos, Glauber não se rende sequer às suas próprias fórmulas, mesmo que legitimadas pela crítica especializada. A cada filme, a implosão do modelo anterior. Ao esperar a projeção nas telas, o artista-cidadão parte para a montagem-paralela: o des-curso dialético em questão. O canto épico-didático, a ópera e o distanciamento brechtiano decantam o melodrama; a des-razão desestabiliza os dogmas.

Glauber encarna o espírito quixotesco de uma época quando se flertava com a utopia libertária no Terceiro Mundo, conectado com os cinemas novos, as lutas anticolonialistas, a revolução cubana, o Maio de 68 e outros focos de inquietação. A militância nas redações sustenta o sonho de transfigurar dramas em alegorias. O exercício da crítica, a agitação cultural e a filosofia do cinema novo passam a ser inoculados na imprensa partindo da Bahia.

Em Paris, vive um episódio marcante: é convidado a colaborar na revista Cahiers du Cinéma, no número especial sobre a morte de Pasolini. Diante do assassinato cultural do cinepoeta italiano, Glauber grava seu próprio depoimento num gravador, como se estivesse conversando normalmente com Pier Paolo – para espanto dos críticos da revista francesa.

Do manifesto da estética da fome ao da estética do sonho, o personagem atravessa o kaos sob transe na Terra do Sol e se alia com Deus e o Diabo em nome da redemocratização do Brasil.

Cinema e jornalismo seguem permeando o cotidiano combativo de Glauber, a ponto de inspirar o personagem-chave de sua obra-prima, Terra em Transe: o jornalista-poeta em trânsito Paulo Martins (Jardel Filho), que hesita entre o ato e a arte: “A política e a poesia são demais para um só homem”.

Cineasta e repórter
Outro fato marcante na vivência glauberiana da relação do jornalismo com o cinema ocorre quando assume a direção de Barravento, seu primeiro longa-metragem. Ao trocar o posto de produtor-executivo pelo de diretor do filme, Glauber escreve uma carta para João Falcão, diretor do Jornal da Bahia, pedindo afastamento de suas funções de repórter de polícia. O cineasta fala mais alto que o repórter e decide fundar, com Roberto Pires, a Iglu Filmes, o ciclo baiano de cinema.

Durante o exílio na Europa (1969-1976), a consciência aguda do papel da imprensa na redemocratização do país motiva Glauber a enviar, em 1974, de Roma para a revista Visão, a “carta-bomba” que chama o general Golbery de “gênio da raça ao lado do Professor Darcy (Ribeiro)”. O gesto teatral que visava comprometer publicamente os articuladores do projeto da abertura (Glauber visitara também o general Figueiredo em Portugal) causa a ira da esquerda e decreta a imolação política de Glauber.

Seguindo as lições do mestre Rossellini, Glauber potencializa o alcance da televisão no Abertura, na TV Tupi (1979-80). Há quem diga que, nos quatro meses em que conduziu o programa, ele provocou mais polêmica do que todos os seus filmes juntos. E, graças à sua anárquica performance e ao carisma dos personagens centrais – Severino e Brizola (o morro carioca e o sertão) –, Glauber atinge a maior popularidade de sua carreira. O cineasta implode a mise-en-scène televisiva, encara temas-tabus em plena ditadura, precipitando situações incontroláveis para os censores do regime. Mobiliza, assim, o espectador a precipitar o rito de abertura política em vias de erupção no país.

O elenco improvisa e Glauber adota o primeiro plano para encarnar sua verdade “eustoryka”, num gesto antiliteral e metateatral. O “cinema espacial” transborda da tela e se expande, para ser visto inclusive “na cama, na festa, na greve ou numa revolução”.

Glauber, o repórter, surge na pele de Antonio Pitanga, em recorte documental, para iluminar o caminho do Cristo Negro. O jornalista Carlos Castelo Branco é convocado por Glauber para situar o filme no tempo-espaço histórico. É o diário da Terra. Como um DJ, Glauber dirige a cena e opera o toca-discos na sala enquanto Castelo Branco disseca as contradições do regime militar. No auge de seu relato, Castelo cita uma frase bombástica do general Médici: “A nação vai bem, mas o povo vai mal”. Glauber rege ao vivo o plano-sequência, sobe o volume do LP de Villa-Lobos, elevando a cena do registro documental para uma dimensão trágico-apoteótica.

Ainda no Planalto, em plena Sexta-feira da Paixão, o dublê de jornalista assalta a gramática, assinando o caderno especial Alvorada Segundo Kryzto, do Correio Braziliense. Chutando os clichês dos manuais de redação, Glauber incorpora ao texto insights descolados de sessões de psicanálise, a fim de compor um afresco essencialmente religioso. Forja uma inusitada nomenclatura na qual o K substitui o C, o Z o S, e o Y o I, evocando assim a força subjetiva do ynconsciente. Uma ruptura na sintaxe jornalística do lugar-comum.

Na contracorrente, Glauber desintegra a lógica narrativa e, no âmbito ideológico, investe na estranha intuição, profetizando uma “transição democrática”, defendida amplamente nos jornais, em que prega o diálogo com ala liberal dos militares. Pelas posições controversas, o alvo passa a ser o seu filme mais radical, A Idade da Terra, que, sob o pretexto de ser produzido pela Embrafilme (no governo militar), é boicotado pelo júri, pela crítica, e “crucificado no Festival de Veneza de 1980”.

Com pressa de viver (ele prevê sua morte aos 42 anos, o número inverso do de Castro Alves), e arrasado com a hostilidade ao filme, exila-se em Sintra, Portugal, com a mulher e os filhos, e volta ao Rio de Janeiro, onde sai definitivamente de cena, comovendo o país.

O tempo, contudo, fez justiça ao artista, cujo filme-testamento foi exibido inteiramente restaurado no encerramento de Veneza, que, 20 anos depois, se redimiu da intolerância exalada nos anos 1980.

Convém lembrar que, antes de os filmes de Glauber retornarem ao circuito, a novíssima geração nutria um velado preconceito em função do vínculo atávico do diretor com o cinema novo, e, por conseguinte, com a Embrafilme. Aos olhos dos jovens realizadores, esse fato tornou-se crucial para situá-lo na trincheira oposta à do chamado cinema marginal.

Na medida, porém, que a versão de Glauber veio à tona, em viva voz, por meio de registros até então desconhecidos, percebeu-se que a situação era mais complexa do que a imaginada. Ao voltar do exílio, no final dos anos 1970, Glauber transforma-se em “marginal do cinema novo”, é excluído da Embrafilme, empresa da qual foi artíficie e que, só após protestos do cineasta e de amigos, decide produzir A Idade da Terra.

Baixada a poeira, é possível compreender melhor as posições estratégicas de Glauber, por vezes contraditórias, diante dos pares que mais tarde abandonaram o espírito primordial do movimento. O papel de liderança que coube a Glauber nessa fase, em nome do projeto utópico de criação de uma indústria de autores, ao mesmo tempo em que o isolou da classe, o reaproximou de autores fundamentais como Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, que praticavam um cinema mais afinado com suas inquietações estéticas.

Farol para os que se espelham em sua inventiva trajetória e fantasma para os realizadores ameaçados pela vulcânica produção em 42 anos de vida, Glauber segue desafinado com o coro dos acomodados que preferem vê-lo lacrado nas prateleiras das cinematecas.

Criador intransigente, sem filiação estilística evidente, continua despertando paixões e provocando toda sorte de discussões. Vale conferir, por exemplo, no YouTube, as inúmeras apropriações e remontagens espalhadas na rede, feitas com filmes e entrevistas de Glauber que integram o imaginário audiovisual contemporâneo.


Joel Pizzini é cineasta, documentarista e curador da Associação dos Amigos do Tempo Glauber

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