O transcendente e o absoluto

O transcendente e o absoluto

Frei Estevão de Souza OSB é hoje um dos mais eminentes teólogos do Brasil, um profundo conhecedor da obra dos grandes pensadores da Igreja e da herança grega que a teologia traz consigo. Nascido em 1937, foi professor da Unesp, da PUC-SP e da USP, sempre lecionando com seu nome civil: Francisco Benjamin de Souza Neto. Atualmente, é professor do Departamento de Filosofia da Unicamp. Leia a seguir trechos da entrevista que D. Estevão concedeu à CULT no Mosteiro de São Bento, onde ingressou em 1958.

CULT – Os movimentos de resgate da religião são muitas vezes descritos como uma resposta ao “desencantamento do mundo” que marca o materialismo técnico-científico. Mas isso não significaria reduzir a religião a uma função antropológica de compensação simbólica?
D. Estevão – A resposta competente e categórica para esta pergunta deve ser dada pelas ciências humanas de campo (sociologia, psicologia, antropologia). Elas devem dizer se o retorno do religioso é simplesmente a tentativa de preencher esse vazio com aquilo que se deixou de lado. Nós poderíamos inverter a perspectiva e perguntar por que – após o propalado e (em algumas regiões do mundo) efetivo secularismo (e o ateísmo nele implícito) que se desenvolveram durante o século XX – de repente se percebe revivescer, até sob formas entre ingênuas e abusivas, o interesse por Deus, pelo transcendente, pelo absoluto e por esse absoluto que se apresenta sob formas tão particularizadas culturalmente e historicamente como é o caso do cristianismo, que é uma sabedoria muito especial no conjunto das sabedorias humanas. Desde a aurora do que se chama de “era das revoluções” [que começa com a Revolução Industrial, na Inglaterra, e com a Revolução Francesa], seus propugnadores ofereceram tudo ao homem e o que se deu a ele foi sempre extremamente frustrante. É indiscutível que os projetos revolucionários não cumpriram suas promessas ou não se efetivaram, mas também pode-se dizer que aquilo que foi proporcionado, no ato de ser usado ou fruído (para usar aqui uma linguagem agostiniana), revelou-se – conforme já era denunciado pela antiga teologia – finito, limitado e, para as aspirações do homem, insatisfatório. Até agora, as aspirações do homem se estenderam sempre para muito além de tudo aquilo que lhe pôde ser oferecido – mesmo quando se pensa no homem aquinhoado com todos os bens sociais (riqueza, superabundância, segurança, bens de cultura). O homem é de tal maneira constituído em sua razão e na sua vontade que ele há de continuar aspirando além de todos os limites. A capacidade que o homem tem de pensar o universal e de julgar segundo o universal é tal que nenhuma soma ou conjunto – se quisermos usar um conceito matemático – pode ser uma totalidade tal que o satisfaça. Ele pode se satisfazer ao longo de um período de sua vida, mas em algum momento será colocado em confronto com as situações extremas situadas entre o nascimento e a morte – incluindo a morte antecipada, que é a morte dos entes queridos, a morte prematura, a morte “evitável”. Nesses momentos, o aparentemente satisfatório vai se revelar ilusório. Até hoje não é outra a experiência humana.

CULT – Seria possível pensar a religião descartando sua dimensão sobrenatural, a verticalidade que aponta para o transcendente?
D. Estevão – Esse descarte da verticalidade, do absoluto, do transcendente, é algo que implicaria uma distorção tal da teologia e da religião que praticamente não subsistiria nada que continuasse a existir sob este nome. A distinção do transcendente pode ser matéria de discussão: pode-se pensar em religiões que não cultuam um deus pessoal, um deus criador, um deus providente. Mas sempre haveria algo do qual tudo dependeria e que recebe entre nós o nome de absoluto – a partir da apropriação da expressão latina ab alio solutum (aquilo que não depende de algo, aquilo que é livre ou isento de algo). A palavra absoluto foi tomada também em acepção absoluta como aquilo sem o que nada é – e mesmo as religiões que não chegam a uma afirmação transcendente de Deus (porque julgam que tal ente omniperfeito não seria suscetível de ser vislumbrado pelo homem) não podem abrir mão de ter diante delas um absoluto, ainda que imanente e subjacente a tudo (é o caso, parece-me, das religiões da Índia em geral e em especial de algumas formas do budismo).

CULT – Como isso se dá no pensamento cristão?

D. Estevão – A teologia cristã representa a afirmação não só do absoluto ou da transcendência, mas da identidade entre o absoluto e a transcendência e do caráter pessoal desse absoluto, verbalizado sob o nome de Deus. Trata-se de algo do qual esta teologia não pode abrir mão, sob pena de se dissolver, reduzindo-se a algo que seria análogo a um cadáver. A perseverança dos cristãos – e dos católicos entre eles – consiste em continuar, mesmo reconhecendo a impropriedade de nossa linguagem e o caráter no máximo analógico dos nossos conhecimentos a respeito de Deus, a propor-se como conhecimento de Deus sob alguma forma e em alguma medida. Ainda que se diga – desde S. João Damasceno e antes dele, passando por Pseudo-Dionísio e Agostinho até chegar em S. Tomás de Aquino – que de Deus nós sabemos muito mais o que Ele não é do que o que Ele é, preserva-se a referência a um absoluto pessoal. A partir daí, a teologia se desdobra: é um discurso sobre Deus ele próprio e um discurso sobre Deus em sua relação com tudo o que não é Ele (tudo aquilo de que Ele é capaz de produzir e tudo aquilo que Ele efetivamente veio a produzir), ou seja, o Deus criador em Sua relação com as criaturas. A teologia vai estudar não propriamente a criação, mas Deus enquanto criador; e não propriamente o governo dos entes inteligentes, mas Deus como seu governante – e não simplesmente a ação mediante a qual Deus leva os entes inteligentes à perfeição à qual Ele os destinou, mas Deus enquanto aquele que somente Ele leva estes entes inteligentes até esta perfeição. Mesmo por que este levar não se distingue realmente da ação de criar, assim como a ação de criar não se distingue realmente da essência do ser de Deus. Se eu penso a consumação e a perfeição de tudo em Deus, a teologia continuaria sendo o estudo deste Deus enquanto instaurador dessa perfeição última.

(1) Comentário

  1. Preciosa essa entrevista com esse admirável pesquisador e religioso: são de palavras e ideias como essas que precisamos cada vez mais e nos ajudam a resgatar os verdadeiros valores dessa vida cotidiana efêmera e dolorosa.

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