O tempo que brinca e ri

O tempo que brinca e ri

 

“Deus, que ao homem submeteu o mundo,
ao homem apenas concebeu o riso
para que se divertisse, e não às bestas
que não têm razão nem espírito nas cabeças.”

Ronsard, Oeuvres.

Zabobrim, o rei vagabundo – em cartaz no Teatro do Sesc Santana até o dia 4 de outubro – é daquelas montagens que procuram recuperar um veio de tradição muito antiga na história do teatro: o da comicidade primitiva e popular. Unindo a linguagem do palhaço à da commedia dell’arte, o espetáculo, com direção de Tiche Vianna e dramaturgia da própria diretora em parceria com o ator Esio Magalhães, constitui uma experiência bastante divertida, cuja grande qualidade é suscitar o riso ingênuo, alegre, franco – acontecimento cada vez mais raro no panorama da cultura artística contemporânea, preocupada, sobretudo, em estimular um tipo de humorismo que faz do escárnio e da desfaçatez (sobretudo, em relação às classes sociais subalternas) suas molas propulsoras.

Ser “primitivo” e ser “popular” aqui ecoa a definição de um crítico literário do porte de Northrop Frye, para quem “o primitivo corresponde muitas vezes ao que foi popular há muito tempo, e o popular frequentemente começa a parecer primitivo depois de um certo tempo”. Investigando o modo como tais categorias são a base do humor de A tempestade (1611), de William Shakespeare, o crítico canadense afirma: “Entre as formas primitivas e populares do drama da época estava a commedia dell’arte italiana, que já se tornara conhecida na Inglaterra. Essa era uma fórmula dramática derivada de um repertório de personagens típicas da Nova Comédia, ou talvez de farsas até mais antigas do que isso”, lembrando logo em seguida que “os clowns (zanni, de que se derivou a nossa palavra ‘zany’ [burlesco, cômico]) participavam de uma série de quadros cômicos, tecnicamente chamados de lazzi”.

Na peça do Barracão Teatro, o palhaço-vagabundo Zabobrim, interpretado por Esio Magalhães, vive às turras com os habitantes de uma pequena cidade (representados pelos atores Cintia Birocchi, Raíssa Guimarães, Rodrigo Nasser e Ulisses Junior, que fazem uso de algumas máscaras clássicas da commedia della’arte, misturando-as a outras livremente inspiradas nela), sendo escorraçado praticamente por todos os lugares por onde passa ou nos quais quer se abrigar. Certo dia, ele encontra uma lâmpada mágica ao revirar um latão de lixo em busca de comida. Um gênio – interpretado por Andréa Macera, em participação especial – surge de repente e lhe concede o direito de fazer três pedidos. Após desperdiçar os dois primeiros, sem nem ter se dado muito bem conta disso, Zabobrim faz o terceiro pedido: tornar-se um rei poderoso. Seu desejo é atendido, e o, a partir de agora, ex-vagabundo é transportado para um reino do passado, que vive os dias de uma monarquia tirânica, cuja figura principal será assumida obviamente por ele. Acontece que não somente Zabobrim carrega consigo seu comportamento e seus valores de palhaço e de mendigo – o que é a causa de muitas confusões – como também o regime monárquico está com seus dias contados, uma vez que o fervor revolucionário da plebe começa a ganhar corpo, levando a cabeça coroada do rei a ficar por um fio.

Os efeitos cômicos do espetáculo nascem de duas principais vertentes: da natureza da narrativa, de um lado; e, de outro, da atuação dos intérpretes. O entrecho dramático da inversão paródica de papeis sociais é um dos traços fabulares cuja origem se perdeu na noite dos tempos (não nos esqueçamos de que Ulisses na Odisseia, o segundo poema épico mais antigo de que se tem notícia no Ocidente, composto por volta do século VIII a. C., sai de sua Ítaca natal como rei e retorna a ela vinte anos depois disfarçado de mendigo). Aqui, tal enredo adquire os contornos de uma transformação muito conhecida nas manifestações culturais medievais: “a do bobo que vira rei”, estudada tão acuradamente por Mikhail Bakhtin em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Lembra o crítico russo que os bobos da corte estavam sempre presentes às cerimônias rituais para justamente parodiá-las: “Nenhuma festa se realizava sem a intervenção dos elementos de uma organização cômica, como, por exemplo, a eleição de rainhas e reis ‘para rir’ para o período da festividade”.

Assim, a grande força humorística que advém da fábula de Zabobrim, o rei vagabundo – já aludida no próprio título da peça – é sua situação paródica básica: trata-se mesmo de um “rei para rir”. A partir da instauração deste elemento nuclear, outros dispositivos cômicos, críticos e narrativos serão disparados pela dramaturgia em direção à plateia, envolvendo-a em um clima de vida festiva muito original. Textos teatrais que fazem bom uso das inversões paródicas (a história da literatura dramática está repleta deles) levam o espectador a perceber a dualidade do mundo e da vida humana por meio da exploração de uma ambiguidade de acentuado traço filosófico (vide Heráclito e sua equivalência entre opostos, tão bem definida por Riobaldo em Grande sertão: veredas: “… o que vale é o que está por baixo ou por cima – o que parece longe e está perto, ou o que está perto e parece longe”), mas também de inegável vocação política (sempre há algo de perturbador em escarnecer dos vencedores, ridicularizar os mortos célebres, investir de poder os desvalidos…). Além disso, tais textos fazem os espectadores igualmente entrar em contato com a ludicidade inerente à vida teatral, em caráter estrito, e à vida artística, de modo geral. Ludicidade esta que compete a cada pessoa do público querer transportar também para a vida social. O teatro mais potente embaralha as fronteiras entre a arte e a vida, instaurando um jogo muito proveitoso entre a realidade e seus modos de representação.

Por fim, o mecanismo narrativo da inversão paródica, calcado na dualidade e no jogo, pode levar à experiência da alternância e da renovação, caracterizadas, como defende Bakhtin, a partir da observação dos festejos carnavalescos, “pela lógica original das coisas ‘ao avesso’, ‘ao contrário’, das permutações constantes do alto e do baixo (‘a roda’), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões. A segunda vida, o segundo mundo da cultura popular constrói-se de certa forma como paródia da vida ordinária, como um ‘mundo ao revés’”.

Em relação ao trabalho dos intérpretes, é do contraste estabelecido entre a atuação do palhaço (figura central na linguagem circense) vivido por Esio Magalhaes e a dos tipos representados pelas máscaras da commedia dell’arte que o espetáculo extrai sua segunda linha de força. Cintia Birocchi, Raíssa Guimarães, Rodrigo Nasser e Ulisses Junior se desincumbem muito bem das figuras a que dão vida, investindo seus corpos e suas vozes de uma preparação técnica bastante eficiente no conjunto geral. Entretanto, a despeito deste firme trabalho de base, o centro nervoso da performance cômica compete mesmo a Esio Magalhaes, para cujo personagem, o impagável Zabobrim, converge grande parte da atenção da plateia. Trata-se de um ator em excelente momento de sua carreira, beneficiado por uma visível maturidade artística. A figura que ele constrói em cena evoca o melhor de nossa comicidade primitiva e popular (presente no teatro, no cinema e na televisão), expressa por meio de um corpo de destreza admirável, de uma voz de plasticidade jocosa, ladina e de uma presença espirituosa que se recusa a perder qualquer chiste, brincadeira ou possibilidade de jogo. Bons atores escapam sempre às racionalizações. Como justificar um talento cômico infenso a qualquer compreensão intelectual? Muito provavelmente, pela via das faculdades perceptivas, a que damos pouquíssima atenção. Talvez seja mesmo somente um “jeito de corpo”, como já definiu Caetano Veloso em relação a Renato Aragão e sua trupe. Ésio Magalhães domina muito bem uma das principais ferramentas de trabalho do palhaço, a arte da improvisação, dotando-a de uma agilidade constantemente cindida entre formas mais bem acabadas de humor e aquelas mais rudes, que apostam tudo na intuição. Não há palhaços apolíneos, e é então da entusiástica energia corporal-sinestésica produzida incansavelmente pelo ator que seu personagem Zabobrim se aproveita muitíssimo bem.

Praticamente o mesmo se pode dizer da presença de Andréa Macera, que dá vida a uma hilariante “palhaça-gênio”. Basta a intérprete entrar em cena para instaurar em torno de si o halo de uma comicidade das mais espontâneas, naturais, genuínas – que em confronto com a de seu companheiro de picadeiro leva a momentos eletrizantes. É uma pena que o espetáculo se aproveite tão pouco do talento dela.

Não se pode esquecer de registrar aqui o firme trabalho de direção a cargo de Tiche Vianna. No ano em que completa três décadas como pesquisadora da linguagem da commedia dell’arte (que tão diletantemente tem ajudado a difundir entre nós), a diretora, e uma das fundadoras do Barracão Teatro, merece um reconhecimento especial. Pela atuação empenhada e discreta longe dos holofotes, mas sempre muito perto da genuína criação teatral.

Vale lembrar que a temporada no Sesc Santana conta ainda com a execução de música ao vivo criada por Marcelo Onofri, compositor e diretor musical do espetáculo, que se reveza com Henrique Cantalogo ao piano. A atmosfera musical burlesca, executada com a ligeireza que lhe é peculiar, reforça no espetáculo sua dinâmica lúdica e irreverente. A música não leva nada a sério, como tampouco Zabobrim leva a sério o pianista, a quem se dirige de vez em quando.

No prólogo de suas Novelas exemplares (1613), Miguel de Cervantes defende o estado de puro divertimento ao qual as narrativas que reuniu podem conduzir o leitor. “Nem sempre se está nos templos; nem sempre se ocupam os oratórios; nem sempre se lida com negócios, por mais importantes que sejam. Há horas de recreação, para que o espírito aflito descanse”, afirma o autor de Dom Quixote. Em tempos exasperados e iracundos como os nossos (em que posições religiosas e políticas, por exemplo, são defendidas por meio de uma gravidade tão aflitiva quanto ridícula), assistir a Zabobrim, o rei vagabundo constitui um exercício recreativo dos mais descompromissados, e, por isso mesmo, “honesto” e “agradável”, mais “proveitoso” do que “prejudicial”, de acordo com as palavras de um escritor que soube retratar como ninguém o aspecto paródico não só da arte da narrativa, mas também da própria vida. 

Zabobrim, o rei vagabundo – Barracão Teatro

Onde: Sesc Santana – Teatro – Av. Luiz Dumont Villares, 579 – Jardim São Paulo.
Quando: Até 4 de outubro; Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 18h
Quanto: De R$ 9,00 a R$ 30,00
Info: (11) 2971-8700.

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