O teatro como “logos” do teatro

O teatro como “logos” do teatro

Welington Andrade

“o novo/ não me choca mais/ nada de novo/ sob o sol
apenas o mesmo/ ovo de sempre/ choca o mesmo novo”.

Paulo Leminski.

Guerra sem batalha ou Agora e por um tempo muito longo não haverá mais vencedores neste mundo apenas vencidos é o nome do espetáculo que a Cia. Les Commediens Tropicales e o Quarteto À Deriva estão encenando no anexo da Sala Adoniran Barbosa e no Espaço Missão do Centro Cultural São Paulo, baseado em duas fontes principais: a autobiografia do dramaturgo alemão Heiner Müller (1929-1995) – Guerra sem batalha: uma vida entre duas ditaduras –, publicada em 1992, e um texto do próprio autor, Mauser, de 1970, no qual Müller, em franca intertextualidade com A decisão, que Bertolt Brecht escreveu entre 1929 e 1930, faz uma crítica à teoria da peça didática. Mas há ainda uma outra alusão à obra de Brecht, explícita no longo nome do espetáculo. Trata-se da fala final do protagonista do texto inacabado O declínio do egoísta Johann Fatzer (1927-1930) – “Quando vocês duvidaram de mim/Foi a minha perdição/E de agora em diante e por muito tempo/Não haverá mais vencedor/No mundo de vocês, mas só/Vencidos” –, que Müller faz ecoar também em sua biografia.

A partir de material tão densamente articulado como esse, ao qual aderem algumas cenas criadas pelos próprios artistas envolvidos no projeto, a Cia. Les Commediens Tropicales e o Quarteto À Deriva conceberam um ato de teatro cuja potência merece ser conhecida pelas plateias paulistanas. Potência esta disposta a produzir uma reorganização do discurso político que o teatro contemporâneo não deveria se furtar a enunciar e, ao mesmo tempo, disposta também a evidenciar a crise da arte nos dias de hoje, cindida entre aquilo que ela não é mais e aquilo que ela não é ainda. Ato potente ainda que solicita do comentarista de teatro o abandono do “doce e velho estilo” de fazer crítica, trocando, paradoxalmente, o texto inteiro, mas alquebrado por uma forma fragmentada, mas íntegra de registrar seu medo de falhar e seu espanto diante do depósito de esperança no novo que a ele pareceu constituir a encenação. 1º fragmento: Há muitos espaços e tempos abertos no espetáculo. E muitas fendas em sua estrutura discursiva também. O que talvez possa sugerir um antídoto contra a “sociedade de controle” cuja emergência foi delineada por Gilles Deleuze. As formas teatrais especulares e espetaculares que ocupam grande parte dos teatros nos dias de hoje são dispositivos de comando que as plateias internalizam absoluta e micrologicamente, sem se darem conta do processo de normalização a que estão se submetendo. Guerra sem batalha pressupõe um espectador livre, ou disposto a mergulhar na amplidão de sua própria subjetividade, diante de muitas irrupções de descontrole. 2º fragmento: Os cenários-instalações e os figurinos parecem funcionar como resíduos cujo objetivo é macular o campo de visão desejoso do “espetacular integrado” de que trata Guy Debord. “… já não existe nada, na cultura e na natureza, que não tenha sido transformado e poluído segundo os meios e os interesses da indústria moderna”, afirma o filósofo francês. Guerra sem batalha critica a percepção do “devir-falsificação do mundo”, ao convidar o espectador   a fazer uso de uma base sensorial inspirada nos desígnios da razão artesanal. 3º fragmento: A presença do Quarteto À Deriva como parte essencial do espetáculo – e não na execução de um mero acompanhamento musical da cena, como registram os serviços de alguns guias culturais da cidade – instala a disrupção do “teatro para ouvir”, desincumbindo o olho do espectador de se dirigir integralmente a uma teia simbólica visual de “interface contínua” (novamente Deleuze). Forçado a abandonar o reino da ótica, o olho do público é atraído para aquilo que não lhe é essencial, isto é, a linguagem da música, convertida em desvio, afastamento, deriva…

4º fragmento: A fricção nascida do encontro entre Mauser e Guerra sem batalha: uma vida entre duas ditaduras, de um autor morto há duas décadas, e o imanente diálogo que estas obras estabelecem com um outro ilustre cadáver anterior, Bertolt Brecht, desaparecido há 59 anos, suscitam uma dramaturgia viva, em que o paroxismo da tradição é se flagrar como rebento do novo. “O que precisamos é do futuro, e não da eternidade do instante”, adverte Müller. Sobre como a novidade pode se apartar de sua monótona reprodução a serviço de um presente eterno e da consequente aniquilação de qualquer promessa de futuro parece versar a dramaturgia do espetáculo. 5º fragmento: Novamente a música, propondo a introspecção distraída que só nos acomete nas horas mortas, lentas ou desinvestidas de marcas de produtividade. “Quando há atrasos ou intervalos de tempo vazio, raramente são aberturas para a deriva de consciência, na qual ficamos livres dos constrangimentos e demandas do presente imediato”, observa Jonathan Crary a respeito da cultura digital que tem colonizado a faculdade da atenção do homem moderno. Talvez uma das funções do quarteto em cena seja evidenciar quão incompatíveis são devaneio e celeridade. 6º fragmento: A desorientação do espectador diante de que cena acompanhar rege a abertura e o encerramento do espetáculo. Dúvida a respeito de qual sentido seguir nas pontas; desconcerto frente a que sentidos conseguir no meio. 7º fragmento: O fato de o espetáculo ser gratuito frustra a identificação do espectador-consumidor com a uniformidade e o valor do teatro-mercadoria. Efeito correlato é obtido pelo fato de os atores não voltarem ao final para agradecer a aplausos que, então, não existem. Se em “eles receberam muitos aplausos”, “aplauso” se refere a uma moeda de troca, a que tipo de troca poderia referir-se “não-aplauso” em “eles não receberam aplauso algum”? 8º fragmento: O estranhamento que advém de todos os lados obriga o juízo crítico a se confrontar consigo mesmo, conforme elucida Giorgio Agamben: “Tomando consciência da própria sombra, a arte acolhe, assim, imediatamente em si a própria negação e, superando a distância que a separava da crítica, torna-se, ela mesma, o logos da arte e da sua sombra, isto é, reflexão crítica sobre a arte”. Resulta daí os textos que compõem o livro-programa da peça constituírem o “juízo crítico que põe a nu a sua própria dilaceração”, ainda de acordo com o filósofo italiano. 9º fragmento: A nudez que acomete os corpos dos atores e o claudicar desses corpos vulneráveis pisando sobre os incontáveis estilhaços de vidro que lhes servem de palco-chão repercutem não somente a imagem do artista abandonado à própria violência (uma vez mais, Agamben), como também a busca de Artaud por um homem que possa refazer o próprio corpo. “Artaud, a linguagem da tortura”, propõe Heiner Müller, quase em forma de hai-kai.

10º fragmento: “Somos a primeira geração do edital”, afirma um dos textos do livro-programa, notando que a Cia. Les Commediens Tropicales já completou dez anos de existência e que as verbas públicas para o teatro de grupo em São Paulo continuam escassas. “Nos tempos que correm não é pouca coisa converter consciência artística em protagonismo político”, chama a atenção Paulo Arantes em uma entrevista concedida em 2007 a respeito do movimento do teatro de grupo em São Paulo, que arrancou do poder público a Lei de Fomento: “Foi uma vitória conceitual também, pois além de expor o caráter obsceno das leis de incentivo, deslocou o foco do produto para o processo, obrigando a lei a reconhecer que o trabalho teatral não se reduz a uma linha de montagem de eventos e espetáculos. Nele se encontram, indissociados, invenção na sala de ensaio, pesquisa de campo e intervenção na imaginação pública. Quando essas três dimensões convergem para aglutinar uma plateia que prescinda do guichê, o teatro de grupo acontece”, analisa o filósofo brasileiro. Em Guerra sem batalha, dois grupos artísticos associados se abrem à invenção e à intervenção na imaginação pública. Eis um verdadeiro acontecimento! 11º fragmento: Em Exiles and émigrés, Terry Eagleton defende a ideia de que todos os maiores escritores modernos da literatura inglesa eram exilados ou emigrados, isto é, marginais sociais, concebendo, por extensão, a imagem do artista como um indivíduo isolado dentro da sociedade. Apenas em um teatro movente de percursos e de sentidos, no qual criadores e público possam se perceber como os expatriados que verdadeiramente são, é possível exercitar hoje a verdadeira consciência política. (Some-se ao repertório do grupo essa citação advinda de um laboratório circunstancial de plágio, de Meios sem fim: notas sobre a política, de Giorgio Agamben). O campo de refugiados desta guerra sem batalha é ocupado por Beto Sporleder, Carlos Canhameiro, Carolina Callegaro, Cassio Pires, Christian Piana, Christine Rohrig, Daniel Gonzalez, Daniel Muller, Guilherme Marques, Júlia Polý, Julio Dojcsar, Maria Tendlau, Michele Navarro, Paula Carrara, Paula Mirhan, Renan Marcondes, Rodrigo Bianchini, Rubens Velloso, Rui Barossi, Tetembua Dandara e Wagner Barbosa. A depender da ousadia e da prontidão de cada um deles, o teatro-desterritorializado de São Paulo não acatará mais a lógica da exceção-concessão. 12º fragmento: Se a crítica “depende de uma aptidão não para descobrir a obra interrogada, mas ao contrário para cobri-la o mais completamente possível com sua própria linguagem”, como postula Roland Barthes, a reconstituição das “regras e dos constrangimentos de elaboração dos sentidos” apreendidos na experiência de assistir duas vezes a Guerra sem batalha somente foi possível graças à cumplicidade surgida das leituras de Conversações 1972-1990, de Gilles Deleuze; A sociedade do espetáculo e Comentários sobre a sociedade do espetáculo, de Guy Debord; Heiner Müller: o  espanto no teatro, organizado por Ingrid Dormien Koudela; 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, de Jonathan Crary; O homem sem conteúdo, de Giorgio Agamben; O novo tempo do mundo, de Paulo Arantes; A tarefa do crítico, em que Terry Eagleton dialoga com Matthew Beaumont; Crítica e verdade, de Roland Barthes; e O 18 de brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx. 13º fragmento: “Em que antilinguagem a razão ainda pode se expressar nesse caso?” Herbert Marcuse. Guerra sem batalha Onde: Centro Cultural São Paulo – Anexo da Sala Adoniran Barbosa e Espaço Missão (Rua Vergueiro, 1000, Liberdade, São Paulo). Quando: até 15 de março (sexta e sábado: 21h; domingo: 20h). Entrada gratuita, com retirada de ingresso duas horas antes do início da sessão. Info: (11) 3397-4002.

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