O sequestro do Estado pela extrema direita
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O impeachment de Dilma Roussef foi um golpe de Estado segundo o conceito clássico, de manual: a violação premeditada das formas constitucionais, seja pelo governo (por exemplo, o golpe de Getúlio em 1937), seja por órgãos ou pessoas que detêm autoridade (golpe de 1964). No modo, porém, era uma novidade. Não houve tanques ou soldados nas ruas e ninguém preso na calada da noite, mas por decisão judicial. Uma sequência de atos jurídicos e políticos com aparência de constitucionalidade. Sob essa forma nova, desenvolve-se insidiosa extensão temporal do golpe, um sequestro permanente do Estado. Assim, depois da deposição da mandatária constitucional, seguiu-se uma eleição mutilada. O candidato favorito, Lula, foi impedido de disputá-la por força de uma decisão judicial que violava a presunção de inocência, cláusula pétrea da Constituição. Logo, eleição ilegítima.
Eleito ilegitimamente, Bolsonaro cometeu crimes contra o Estado e a sociedade. Na pandemia levou à morte pelo menos 300 mil brasileiros. Isso foi perpetrado por meio de uma estratégia institucional de propagação do vírus, de acordo com Daysi Ventura et all, que mapearam as normas jurídicas editadas pelo governo federal.
A CPI da pandemia apurou os crimes de tentativa de homicídio, perigo para a vida ou saúde de outrem, epidemia, infração de medida sanitária preventiva, omissão de notificação de doença, charlatanismo, incitação ao crime, falsificação de documento particular, falsidade ideológica, uso de documento falso, emprego irregular de verbas ou rendas públicas, corrupção passiva, prevaricação, advocacia administrativa, usurpação de função pública, tráfico de influência, corrupção ativa, fraude em licitação ou contrato, fraude processual, crime de organização criminosa e crime contra humanidade. O relatório da CPI dorme profundamente nos escaninhos do Estado e arrisca perder-se nas brumas do tempo. O então procurador geral da República não fez a denúncia que a Constituição determinava e o atual faz de conta que não tem nada a ver com o assunto.
Dezenas de requerimentos de abertura de processos de impeachment que deveriam ter resultado – em nome da civilização – no afastamento do presidente ilegítimo e assassino foram ignorados pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. Como deveria ser trivial saber-se, sob o Estado de Direito não são possíveis atos de pura vontade (“faço ou não faço porque quero”). Maia não fez e nem disse por que não fez. Compactuou com o estado de coisas golpista.
A eleição de 2022, enfim democraticamente disputada apesar da sabotagem da extrema direita, pareceu conduzir à restauração da legalidade, ao fim do estado de coisas golpista. No entanto, novo mecanismo surgiu. A grande mídia e seus colunistas adotaram o gracioso eufemismo “presidencialismo de coalizão” (sic) para o que é usurpação do poder presidencial pelo presidente da Câmara por meio da chantagem política e, no limite, por uma ameaça de impeachment que, como na história do rei nu, todo mundo finge que não está vendo. O mecanismo impede o exercício pleno do poder pelo presidente da República, viola a vontade dos eleitores e resgata a eleição que a extrema direita perdeu.
O presidente da Câmara pauta-se pelos interesses da ignara massa burguesa e por ela é reconhecida como poder real. As operadoras dos planos de saúde, que vem de suspender unilateralmente contratos de idosos, não se dirigiram ao presidente da República para negociar uma solução. Reuniram-se com Arthur Lira. As recentes votações parlamentares, derrotas do governo, foram uma demonstração de poder do golpismo permanente: a derrubada da criminalização das fake news e a proibição da chamada “saidinha” dos presos. Ninguém, que eu tenha visto, lembrou que o STF declarou recentemente “estado de coisas inconstitucional” no sistema penitenciário diante das condições degradantes e violadoras de direitos fundamentais dos presídios (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347).
Avista-se agora outro pesadelo, projeto de lei em tramitação para anistiar os golpistas de 8 de janeiro, relatado por deputado bolsonarista de carteirinha. É factível em face da consolidação da maioria parlamentar golpista e é o primeiro passo para o que realmente interessa à extrema direita e à massa burguesa ignara, a anistia de Bolsonaro.
Diante desse estado de coisas, o governo e as forças democráticas estão como Fabrice, personagem de A Cartuxa de Parma, de Stendhal. Fabrice queria lutar com o exército de Napoleão. Arranjou um uniforme e um cavalo e saiu à procura das tropas. No caminho deparou-se com tiros de canhão, cadáveres despedaçados, feridos, ele mesmo se feriu. Ao cabo de certo tempo desistiu. Mais tarde, refletindo, ocorreu-lhe uma dúvida: o que ele tinha visto fora uma batalha? E, em segundo lugar, aquela batalha seria a de Waterloo? Era Waterloo.
MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP.
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