O sagrado no cinema

O sagrado no cinema
Luis Buñuel: alheio à angústia nórdica, preferiu ocupar-se das heresias religiosas (Foto: Reprodução)

 

Ao longo da história do cinema, diversos artistas tentaram captar e transmitir o sentimento metafísico, perscrutando os desígnios de Deus. Especialmente preocupado com os aspectos morais da religiosidade, o dinamarquês de formação luterana Carl Theodor Dreyer desenvolveu uma verdadeira estética do Sagrado.

Órfão de uma mãe solteira que teve o corpo retalhado por médicos legistas, Dreyer não cessou de denunciar as injustiças cometidas contra as mulheres na sociedade masculina: em O martírio de Joana d’Arc (La passion de Jeanne d’Arc, 1928), toda a brutalidade dos inquisidores cai sobre a personagem numa sucessão de golpes (todos os acontecimentos do processo são concentrados num único dia, o da morte de Joana d’Arc; os 29 interrogatórios são sintetizados em apenas um) e as seqüências são fragmentadas em grandes planos – dos rostos feios dos inquisidores, de suas indumentárias, dos crucifixos, dos instrumentos de tortura – tornando Falconetti, vestida num saco de estopa, de cabelos tosados, a expressão mortificada, a mais Joana d’Arc de todas as Joana d’Arc do cinema.

Na França, Robert Bresson recuperou a estética de Dreyer em O processo de Joana d’Arc (Le procès de Jeanne d’Arc, 1962) através do minimalismo: rostos imóveis, silhuetas projetadas em muros, buracos na parede, cantos de janela, galhos secos que balançam; o filme é reduzido à sua essência, com silêncios pesados e olhares que dizem tudo.

Na mesma linha, o sueco Alf Sjöberg realizou Barrabás (Barabbas, 1952), com base na novela de Par Lagerkvist: o destino de Barrabás, no lugar de quem Cristo morreu, simboliza a humanidade, encerrada numa prisão, em busca de si mesma; jogos de luz e sombra rompem com o naturalismo, concedendo à trama uma dimensão metafísica.

Seguindo a trilha de Sjöberg no cinema sueco, Ingmar Bergman projeta-se como o grande estilista dos tormentos da alma. Filho de um pastor presbiteriano, que castigava os filhos com violência, ele desenvolve uma sensibilidade mórbida e encontra sua válvula de escape na arte. Seus personagens são marcados pela lembrança de um verão radiante, de “dias redondos e preciosos como pérolas num fio de ouro”, onde o sexo aparece mesclado à harmonia familiar, num estado de felicidade simbolizado por uma frugal refeição composta de morangos silvestres e leite fresco.

Mas o outono chega, trazendo a morte, através de um acidente trágico ou uma doença incurável. Os sobreviventes revoltam-se contra Deus: “Se O visse na minha frente cuspia-lhe na cara”, diz a bailarina que perde o namorado em Juventude (Sommarlek, 1951). Mas a tormenta encontra um fim na compreensão profunda da arte, sublimação da dor que confere novo sentido às vidas mutiladas.

Para além de suas interrogações eróticas, Bergman realiza seus melhores filmes quando alarga o foco de visão, como em A fonte da donzela (Jungfrukallan, 1959), onde uma virgem é violentada e morta por salteadores, mas tem sua santidade reconhecida por Deus, que faz brotar no local do crime uma fonte milagrosa.

Alheio à angústia nórdica, o espanhol Luis Buñuel preferiu ocupar-se das heresias religiosas. Nascido na província de Aragão, onde a Idade Média prolongou-se até a Primeira Guerra, devido à violenta repressão sexual Buñuel começou a associar a morte ao erotismo: junto com a fé, serão essas as forças vivas de sua adolescência e, logo, de toda sua obra.

Em Paris, onde se aproxima dos surrealistas, realiza com Salvador Dalì O cão andaluz (Le chien andalou, 1929), que se inicia com o próprio diretor fatiando com uma navalha o olho aberto de uma mulher. Os Noialles [casal de mecenas do cineasta] adoram esse “apelo ao assassinato” e dão dinheiro a Buñuel para que faça outro filme.

Assim nasce A Idade de Ouro (L’Âge d’Or, 1930), onde a condenação do amor louco pelo capitalismo cristão corresponde à absolvição dos crimes inomináveis do duque de Blangy, que aparece sob os traços do Cristo. Os fascistas jogam bombas nos cinemas que exibem o filme que, por 50 anos, só pode passar em cinematecas. Exilado nos EUA durante a Guerra Civil Espanhola, Buñuel cai na lista negra por assinar um manifesto contra a bomba atômica, e segue para o México, onde, apesar de ter sua criatividade limitada pelo mercado, consegue, bem ou mal, imprimir sua marca nos filmes que aí realiza.

Entre outras investidas heréticas, destacam-se Simão do deserto (Simon del desierto, 1965), onde o santo Simão, isolado em sua torre de todo contato humano, é tentado e vencido pelo diabo; e O estranho caminho de São Tiago (La voie lactée, 1969), onde a viagem de seus personagens a Santiago de Compostela termina com cegos seguindo adiante, curados por Jesus, em direção ao fosso… Ateu, o cineasta investia-se de santidade para minar os alicerces da Igreja: seus padres-operários, seus bispos jardineiros, seus frades jogadores são capachos da burguesia, assassinos ou coisa pior; e seus heróis beatos pecam contra o humano, provocando, com sua bondade cega, catástrofes piores que as que desejavam evitar.

É de maneira diversa que o escritor e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini aborda o Sagrado. Seu primeiro filme, Desajuste social (Accattone, 1961), é uma descrição estilizada de vagabundos e de prostitutas; vendo nesses marginais uma real degradação humana, Pasolini identifica, porém, algo de “religioso” nessa degradação.

Para projetar este sentimento transcendente na história de um ladrão miserável, serve-se da música de Bach, emprega panorâmicas lentas, obtém uma fotografia luminosa, enfoca as personagens como figuras de arte sacra e encerra o filme com um sinal da cruz. É este mesmo aparato de sacralização que utiliza para contar a história de uma prostituta que se esforça para melhorar de vida e oferecer ao filho uma oportunidade de vencer, tendo suas esperanças destruídas pela realidade em Mamma Roma (idem, 1962).

Mais polêmica é a sacralização do subproletariado em A ricota (La ricotta, 1963), que mostra a filmagem de uma “vida de Cristo”: os personagens que interpretam as figuras sagradas nos tableaux vivants da Paixão dançam, riem, entregam-se a orgias; só o ladrãozinho cumpre o destino trágico do Cristo. Pasolini sofre um processo por blasfêmia à religião do Estado, sendo condenado a quatro meses de prisão. Em apelo do procurador da República, alega ter criticado apenas as falsas idéias de religião, e tem a queixa retirada. Quando Pasolini resolve de fato filmar a Paixão, pensam que será uma heresia. Ele realiza, contudo, a mais pura das versões d’O Evangelho segundo São Mateus (Il Vangelo secondo Matteo, 1964).

Mais tarde, ao perceber que o consumismo modificava a própria essência do povo italiano que amava, Pasolini passa a realizar um cinema impopular, à maneira da poesia. Em Gaviões e passarinhos (Uccellacci e uccellini, 1965), o corvo marxista vindo do país da Ideologia, filho da Consciência e da Dúvida, anuncia que a época de Brecht e de Rossellini acabou; personagens chaplinianos, Ninetto e Totó atravessam a longa estrada da história encarnando diversos tipos até reencontrarem o corvo, que devoram: o consumismo incorpora e mata a esperança marxista.

Agora, a ideia do Sagrado vinculada ao subproletariado reaparecerá, de forma irônica, em A Terra vista da Lua (La Terra vista della Luna, 1966), onde a esposa ideal morre e ressuscita para a felicidade do marido e do filho, que dela precisam para os afazeres domésticos, provando a tese de que, para um pobre, não há diferença entre estar vivo e estar morto.

O cão andaluz
Cena de “O cão andaluz”, de Buñuel e Dalí (Foto: Reprodução)

Depois de reler Platão, “com uma alegria indescritível”, Pasolini encontra uma nova maneira de abordar o Sagrado, refundindo a realidade contemporânea na mitologia clássica e substituindo a dialética hegeliana da eterna superação pelo confronto de oposições irreconciliáveis. Em Teorema (idem, 1969), ele imagina o que aconteceria a uma família burguesa se ela fosse visitada por Deus: a epifania só é produtiva para a empregada, que se transforma em fonte de milagres; para o mundo burguês – capitalista ou comunista – que substituiu a alma pela consciência, não há salvação.

Em Medéia, a feiticeira do amor (Medea, 1971), Jasão é educado por um centauro, animal fabuloso, cheio de poesia; com a idade, o centauro torna-se razoável e sábio, um homem como Jasão; mais tarde, o centauro reaparece a Jasão desdobrado: um é o centauro que Jasão via na infância; o outro é o que vê quando adulto: este encontro dos dois centauros significa que a coisa sagrada permanece justaposta ao ser dessacralizada; se, vivendo, realizam-se algumas superações, o que se era antes não desaparece; nada se perde – o progresso é uma ilusão.

Muitos pontos de contato com o universo de Pasolini apresenta a obra do cineasta armênio Sergei Paradjanov (1924-1990), que permaneceu cinco anos preso na URSS, com pena de trabalho forçado, acusado de “homossexualismo” e “contrabando de ícones”. Este gênio do cinema russo, que teve 23 de seus roteiros recusados pela burocracia soviética, que o acusava de “surrealismo”, a duras penas conseguiu concluir os poucos títulos que formam sua filmografia, na qual se destacam Os cavalos de fogo (Teni Zabytyh Predkov, 1965); A cor da granada (Sayat Nova, 1969); A lenda da frtaleza Suran (Ambavi Sumaris Tsikhitsa, 1985) e O trovador Kirib (Ashugi Qaribi, 1988) – belíssimas alegorias espirituais, que revelam o universo mágico das lendas e tradições da Geórgia e da Armênia – o cineasta utilizava atores amadores em trajes regionais, cercados de peças de antiquário, livros, ícones e tapetes, confundindo-os com as rochas do deserto.

Para Paradjanov, Deus desejava que os homens vivessem segundo seus instintos animais, sendo, porém, reprimidos pelo poder. O intenso colorido das composições, a sensualidade das danças, dos tecidos e dos símbolos manipulados; o exotismo de uma coreografia fundida à paisagem; a interpretação quase expressionista dos atores; e a extraordinária beleza física de seus heróis fazem dos filmes de Paradjanov um verdadeiro deleite visual.

Igualmente perseguido pelo comunismo por seu sentimento do Sagrado foi outro gênio do moderno cinema russo: Andrei Tarkovsky. Já em seu primeiro longa-metragem, A infância de Ivã (Ivanovo Detstvo, 1962), ele rompe com o realismo socialista misturando sonho e realidade; a estética oficial admitia que os personagens sonhassem, mas não que seus sonhos se confundissem com os acontecimentos “reais” (mas o que é “real” num filme?).

A obra-prima de Tarkovsky, Andrei Rublev (idem, 1966), biografia do maior pintor de ícones da Rússia, teve sua versão original reduzida à época pela burocracia soviética, que se perturbou com as “cenas de nudez”, e com o que definiu como “experimentalismo” e “negativismo” do filme (que só foi apresentado na URSS na versão original em 1988, nas comemorações da morte do autor).

Ainda na Rússia, Tarkovsky realizou Solaris (Soliaris, 1972), ficção científica de fundo existencialista, prosseguindo suas investigações sobre o “outro lado da existência” em O espelho (Zerkalo, 1974), todo feito de recordações pessoais, transfiguradas por uma imaginação poética; e Stalker (idem, 1979), parábola sobre a liberdade num mundo devastado pelo holocausto nuclear. Já Nostalgia (Nostalghia, 1983), filme de exílio, impregna-se da saudade que Tarkovsky sentia, vivendo na Itália, de sua terra russa. Sofrendo de câncer, realizou O sacrifício (Offret, 1985), sua última obra, uma advertência sobre a proximidade do fim do mundo, e o sacrifício necessário – o abandono do materialismo – para impedir o apocalipse atômico.

Hoje, é o dinamarquês Lars von Trier quem renova a estética do Sagrado: anacrônicos e modernos, seus filmes integram a dimensão metafísica à visão racional do mundo, desenhando um cinema que nega o império da realidade pela revelação da existência da alma. Nascido em Copenhague, filho de pais intelectuais, ateus e comunistas, que proibiam em casa religião e TV, rejeitando, na arte, as emoções fortes dos melodramas e a espiritualidade dos temas sobrenaturais, que consideravam “alienantes” e de “mau gosto”, Lars von Trier começou a fazer filmes aos 12 anos de idade como forma de expressar seu desacordo em relação à rigidez moral de sua família “esclarecida”.

Supostamente sofrendo de uma crise espiritual, converteu-se ao catolicismo, para o desgosto dos pais e a estranheza da Dinamarca, de maioria protestante. Seu primeiro longa, O elemento do crime (Forbrydelsens Element/The element of crime, 1984), um estranho noir fotografado em sépia, despertou a atenção da crítica. Com o fracasso de Epidemic (1987), Trier voltou-se para a TV, realizando Medea (1988), a partir de um roteiro que seu diretor predileto, Carl Dreyer, escreveu e não conseguiu filmar.

Em Europa (Zentropa/Europe, 1991), Trier narra a história de um jovem americano que, logo após a Segunda Guerra, vai trabalhar na Alemanha, pois acredita que “alguém precisa ser bom” para com aquele país; sua bondade, contudo, é usada para fins sinistros. Em 1994, Trier inicia, com Dimension, uma experiência inusitada: todo ano, por volta do Natal, ele grava cenas para o filme, que deverá estrear em 2024; realizada durante 30 anos, a produção pretende mostrar como os atores/personagens transformam-se, física e mentalmente, sem maquilagem.

No seriado O reino (Riget, 1994), Lars von Trier aperfeiçoou sua técnica de “câmera na mão” e radicalizou sua crítica à sociedade dogmática, na forma de uma paródia aos seriados americanos; aqui, os médicos são, desde o princípio, desequilibrados que despertam o grande Mal das profundezas… Trier banha seu filme seguinte, Ondas do destino (Breaking the waves, 1996), um épico do sofrimento, em baladas pop dos anos 70, época em que a ação do filme transcorre, e ao mostrar os sinos suspensos no céu na cena final Lars von Trier impõe-nos sua crença na verdade metafísica.

Em 1998, o cineasta trouxe a público o manifesto Dogma 95, propondo, com seu vocabulário religioso, um fazer cinematográfico despojado, liberto da estética de Hollywood. Os temas dos filmes-dogma são, geralmente, escabrosos, tratando de questões éticas espinhosas, como a fronteira imperceptível entre a razão e a loucura (Os idiotas) e a hipocrisia vigente nas relações familiares e sociais (Festa em família).

Mas enquanto o mundo esforçava-se por digerir o Dogma, Trier demonstrava que suas proibições não passavam de uma provocação: em Dançando no escuro (Dancer in the dark, 2000), ele as transgredia empregando cem câmeras digitais, na mais cara produção cinematográfica da história da Escandinávia. Com uma narrativa intercalada por números musicais sombrios, o filme evolui numa espiral de acontecimentos desgraçados, que culminam com a execução da personagem central, que morre “aliviada” pela notícia da salvação do filho, num happy ending tenebroso.

Privilegiando o conteúdo sobre a forma desgastada pela técnica, desprezando a “bela imagem” canonizada por Hollywood e reivindicando os valores “ultrapassados” da transcendência metafísica, Lars von Trier cria um universo inteiramente pessoal, expresso com uma força poética só encontrada em Dreyer, Bresson, Bergman, Pasolini, Paradjanov e Tarkovsky; sem temer o público ou a crítica, ele leva o cinema para o seu limite, falando, sem intermediários, diretamente com Deus.

Luiz Nazário é professor de Teoria e História do Cinema na Escola de Belas Artes/UFMG


 

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