O rio que vem do Éden ou a ressaca da política
1º Evento de Negócios produzido pela Rede Feminaria, que foi realizado no dia 09/07 de 2016 na Serralheira, Lapa (Foto: Divulgação)
Há séculos no Brasil, os pobres e as minorias não esperam mais nada ou pouco do Estado, por isso podem se reinventar mesmo quando a democracia está sequestrada
Disputar as novas linguagens do ativismo e apostar nas mudanças de comportamento são alguns dos desafios para os grupos, redes, territórios, partidos que estão na contramão dos processos de financeirização da vida.
Romper o “teto” e a “bolha” dos discursos militantes cifrados e especialistas e se conectar com os desorganizados, os que estão com “ressaca” da política, no sentido institucional e que olham para partidos, parlamentares, sindicatos e mesmo para as organizações não governamentais e não se enxergam como parte dessas comunidades e nem se identificam com suas linguagens e valores.
Não se trata apenas de um ódio à política construído a partir de hiperpolarizações e clichês, mas da crise de um modelo, a democracia representativa, com seus efeitos colaterais, como o golpe jurídico midiático que se instalou no Brasil, e não só na América Latina, mas chegou aos Estados Unidos de Donald Trump.
Tivemos um círculo virtuoso nos últimos anos, com experimentos políticos e sociais que radicalizaram processos democráticos no continente: As comunas de Hugo Chávez na Venezuela; a regularização da maconha e legalização do aborto com Pepe Mujica no Uruguai; as experiências de redistribuição de renda e o protagonismo da cultura com Lula no Brasil; os Kirchner na Argentina e os processos de regulação das mídias; a cosmovisão indígena de Evo Morales na Bolívia, etc. Um ciclo virtuoso que sofreu um revés e está de ponta cabeça, demandando uma reconfiguração e reposicionamento em diferentes níveis.
Nos anos 1990 vivemos a crise do neoliberalismo, mas o que estamos vendo agora, no Brasil, na América Latina, nos EUA, é a crise das democracias, é a nossa crise, pois sofremos um rebote da direita e das forças conservadoras também no campo do comportamento, onde os avanços foram menores, transformando os discursos de nichos e “guetos” em parte da cultura de massa! A cultura das diferenças chegou na publicidade, no consumo, no mainstream.
O pensamento das diferenças (feminismos, questões de gênero, culturas periféricas, culturas negras e migrantes) explodiu certezas e produziu uma instabilidade e mesmo um ressentimento global que se volta para contê-lo.
Temos a impressão de que experimentamos um retorno do recalcado com a explicitação dos discursos conservadores, homofóbicos, racistas, feminicidas, patriarcais que produziu o governo de Michel Temer no Brasil ou de Trump nos EUA.
O pânico da participação
A polêmica criada em torno do decreto da participação social, proposta pelo governo Dilma Rousseff e derrotado no Congresso em 2014, já indicava esse “pânico da participação”, sintoma da crise dos intermediários no campo da política diante de um desejo de intervenção na polis de baixo para cima.
O que vimos no Brasil, com a produção e instalação do golpe-jurídico midiático foram milhares de pessoas que passaram a disputar um novo espaço público, as redes conectadas com as ruas, e passam a exercitar uma governança e ruidocracia (tanto pelas esquerdas quanto pelo campo conservador).
Apesar de todos os tipos de manipulações e conspirações que viabilizaram um golpe que depôs uma presidenta da República eleita, emergiram nessa disputa dramática processos de participação direta e sem intermediação, autônomos.
Processos políticos que se assemelham ao que experimentamos no campo da produção cultural e que também produziu uma crise dos atores tradicionais: a crise das gravadoras, editoras, com a ascensão da cultura maker, da produção doméstico-industrial, mídia-livre e uma infinidade de processos massivos de autonomia.
Trata-se também de uma crise de velocidade: governos, Congresso, parlamentares são lentos demais para responder aos desejos de uma democracia em tempo real e online, conectada. Em que as posições e decisões políticas são monitoradas, comentadas, criticadas ao vivo de forma hiperbólica nas redes sociais, por youtubers, celebrities, por um contingente de “desorganizados” que fazem das redes um espaço de disputa, dissenso e construção de um comum.
Obviamente a democracia em rede produz efeitos nefastos com a emergência dos discursos de ódio e linchamentos virtuais, e a indução a tomada de decisões políticas sob pressão e comoção dos muitos. Fato é que estamos em um momento de disputa de narrativas e da emergência de uma ruidocracia que faz uma nova partilha do sensível e redistribui os poderes de decisão.
Ficou claro na crise política brasileira a passagem entre esses modelos distintos. A cultura política baseada na democracia representativa (que não se esgotou totalmente, mas mostra sua insuficiência e seu potencial antidemocrático) e a cultura de redes, plebiscitária, baseada em uma governança e com novos mediadores e dinâmicas que passam dos discursos de celebração das diferenças ao desejo de morte e ódio ao outro.
Tivemos a oportunidade de construir nos últimos anos no Brasil um Estado-rede aberto à cogestão da sociedade, mas esse projeto se desidratou na passagem da gestão dos governos Lula/Dilma, com a criminalização das organizações não governamentais e neutralização de movimentos sociais e culturais que se afastaram do Estado ou se confundiram com ele.
Havia um “pânico da participação”. Os parlamentares que votaram, na Câmara, contra o Decreto da Participação explicitaram esse medo e anacronismo, ao entenderem os mandatos conquistados nas urnas como “reserva de mercado” para os poucos representantes no Congresso, com receio da entrada de novos atores no jogo democrático.
O processo participativo proposto pelo governo progressista não se institucionalizou, ao mesmo tempo, o golpe jurídico-midiático produziu uma intensa participação e engajamento que moveu forças tectônicas, imaginários e mudou comportamentos, mas enquanto a direita considerava mais participação institucional uma usurpação da função parlamentar, estimulou as ruas indignadas que legitimaram o golpe.
O dilema da participação social é que tanto esquerdas como direita ainda veem a representação política como um “cheque em branco” que você assina nas eleições, entrega e lava as mãos. Certa esquerda também criminalizava a aproximação dos movimentos sociais da máquina do Estado, fazendo o discurso da sacralização das ruas como se, sozinhas, as ruas pudessem derrotar as forças obscurantistas mais arraigadas que especulam contra a vida. Pois o golpe foi o contrário, o uso das ruas para a tomada da máquina do Estado.
O que interessa é que esse processo participativo produziu e fez emergir centenas de ações, práticas e movimentos autonomistas e autogestionados que buscam incidir na vida política. São muitas as formas de participação. Mas a democracia representativa se mostrou limitada e frágil diante de uma democracia em tempo real que se vale da comoção, da memética e dos clichês para produzir processos reativos.
Também é fato que o discurso liberal e francamente conservador rompeu um “teto” e passou a falar fortemente numa linguagem pop, memética, que utiliza as redes sociais como um campo de batalha, as novas mídias e os processos massivos para disputar os ‘desorganizados’ decepcionados com a política.
Passaram a disputar os que viram na corrupção o modus vivendi de políticos, empresários que vivem e prosperam à sombra do Estado. Mas que tem dificuldade de entender que a corrupção é a própria forma de funcionamento do capitalismo e seu combate não passa pela demonização de um campo: as esquerdas, como foi feito.
Aos poucos, olhando para o governo Michel Temer entende-se que a corrupção não é um efeito colateral, é a base de um capitalismo mafioso estrutural, um sistema que especula contra o bem comum, especula contra os commons. É o que estamos vendo com o desmonte do Estado de bem estar e a redução dos direitos no Brasil, em uma operação de rapinagem assustadora e veloz.
Corporações privatizam bens comuns que destroem o meio ambiente, monetizam a vida, a saúde, a educação, o sistema carcerário. A vida se torna commodity. Neste momento se torna decisivo discutir outros modelos econômicos, dar visibilidade a a economia da colaboração, economia solidária, comércio justo, finanças solidárias, redes de produção de commons para além do Estado sequestrado.
Laboratórios e redes de inovação
Hoje temos no Brasil tem mais de 150 moedas sociais, e uma enorme quantidade de bancos comunitários, experiências de co-working, redes de colaboração informais. Uma riqueza que vem da pobreza, das bordas, dos centros de inovação sociais e tecnológicas.
Há séculos no Brasil, os pobres e as minorias não esperam mais nada ou pouco do Estado, daí essas construções autonomistas, com grupos da tradição popular, jovens vindos das periferias que produzem mudanças de comportamento, mudanças culturais. Mesmo no ciclo virtuoso, a América Latina tem vivido sempre em crise. A crise é o nosso normal, porque o modelo do capitalismo liberal despotencializa os muitos, ao monetizar a vida.
Temos um devir latino-americano do mundo, o Brasil dos autonomistas, da inovação cidadã, do faça você mesmo, das tecnologias sociais, da cultura da festa e da solidariedade, da colaboração, do mutirão. Experiências arraigadas nos territórios e culturas tradicionais, na cosmovisão indígena, nos grupos de matriz-africana, nas periferias. Mas também uma globalização dos discursos de ódio e de pânico das diferenças, instalados em uma cultura patriarcal e neoescravagista, um capitalismo mafioso em que o Estado gere com os poderes fáticos (crime organizado, máfias corporativas e empresariais).
Dependendo do nosso “ponto de existência”, podemos achar que estamos em um ponto de mutação radical ou em uma democracia em agonia. Acredito que a crise das democracias é apenas um sinal de que algo novo está nascendo: democracia direta e plebiscitária inspirada na velocidade e no tempo real das redes, novas economias, moedas, finanças justas, a cultura hacker, a cultura das redes, a governança, a mídia livre, os laboratórios de inovação cidadã, as tecnologias do comum são forças emergentes em um presente urgente e esfacelado.
Modelos alternativos de desenvolvimento não predatório com redistribuição de riquezas e desmonetização da vida estão surgindo. A inovação cidadã produz commons, bem comum, e encontra soluções e processos “de baixo para cima” e que remixam experiências ancestrais com a apropriação tecnológica produzindo processos colaborativos e de inovação nos territórios.
Existe vida após os golpes e depois de processos de assujeitamento coletivos traumáticos são correntes subterrâneas que não forma interrompidas, são um “rio que vem do Éden” e que traz as experiências de resistência e criação para além dos contextos históricos explodidos.