O que quer uma mulher?
A autora que aqui apresento aos leitores da Cult deixa claro, desde o título, que não deseja o que aparentemente todas as mulheres querem: filhos. O livro espantoso de Maria Lacerda de Moura se chama Amai e… não vos multipliqueis. Se fosse uma obra contemporânea não causaria escândalo; mas a autora, nascida em 1887, escreveu o livro na década de 1920, quando o casamento e a procriação pareciam ser o melhor, senão o único destino da mulher. “Sei o que desejo, sei o que quero”, afirma logo na página 17:
Com relação à vida social, sou antissocial, nem sei, nem me interessa saber. Destaco os indivíduos do bloco social. Em relação à sociedade, sei o que não quero. A minha ética repele os partidos, os programas, toda a moral social.
Coerente com tal postura, Maria Lacerda considera a emancipação feminina mais importante que o direito de voto, cujas condições, no começo do século passado, só seriam atingidas por poucas mulheres. A emancipação seria para todas ou não seria. Sua escrita é assertiva, seu estilo é duro, com frequência dogmático. Cada parágrafo é uma espécie de declaração de princípios:
Por isso, repito: não sou advogada, não sou capitalista, não sou sacerdote, não sou político, não sou acadêmico, não sou comunista nem socialista, não pertenço a nenhuma grei, embora os nomes batismais com que me desfavorecem os críticos (pág. 23).
Apesar de todas as negativas presentes na declaração acima – acrescida da convicção de ser uma pessoa antissocial –, o tema do livro é animado por um permanente desejo de transformar a sociedade. Ele se manifesta em várias facetas. As observações da autora a respeito da atitude dos homens seus contemporâneos conduzem o leitor a pensar que estes deveriam ter o primeiro lugar na fila de candidatos a serem transformados. Não se trata de ser contra eles. Ela reconhece – em uma época na qual raras mulheres tinham como contribuir para a economia doméstica – que os homens são condenados a “mil movimentos diários” para alimentar a família e lhe proporcionar algum conforto. Só que tal responsabilidade os embrutece. Para vencer na vida, passam por cima de quem está perto. Matam o sentimento e a razão. Mesmo que consigam conquistas materiais, os tais chefes da casa não conseguem pensar livremente, oprimidos pela necessidade de sustentar a família.
Contra tantos constrangimentos e restrições, a autora inventa sua própria via de liberdade: considera-se um ser antissocial – em sua época, talvez a única atitude possível para preservar a liberdade e a autonomia de quem nasceu mulher. Em sua época, a mulher era destinada a tornar-se, “em todos os aspectos da vida”, “um ser a serviço”. A serviço de que? Do homem, evidentemente. Mas também do “lar sagrado” do modo de vida burguês, que Maria Lacerda considera uma pândega. Ora, não tendo nascido escrava, a mulher aceita tal destino por obra do que ela considera a mais poderosa das forças reacionárias: a covardia mental.
Vale lembrar, embora Maria Lacerda não o mencione, a expressão freudiana (não chega a ser um conceito) “covardia moral do neurótico”. De forma sucinta, trata-se da submissão do neurótico às exigências (à época repressivas) do supereu, em favor das quais o sujeito recalca as fantasias que expressam seu desejo e desenvolve, fatalmente, uma série de sintomas.
O leitor há de observar que o estilo dessa autora não se parece em nada com o que se esperava – e mais ainda em sua época – de uma escrita feminina. O estilo com que desenvolve seu pensamento é direto, assertivo. Há uma dureza em seu modo de escrever: tentativa de defesa, talvez não consciente, frente a prováveis condenações e críticas de leitoras e leitores. Ou ainda, ao escrever “como um homem”, Maria Lacerda criasse uma autodefesa para sustentar sua própria ousadia.
A hipocrisia moral das classes mais ricas também é alvo das flechas afiadas de Maria Lacerda de Moura. É notável o trecho em que critica a crueldade e a hipocrisia de homens que estupram meninas pobres (em geral empregadas em suas casas) e depois as chamam de “desgraçadas”. Quanto à himenlatria dos bons cristãos, considera simplesmente ridícula que atribui, evidentemente, aos homens supostamente cristãos.
Imagino quanta santidade põem esses fariseus nas suas visitas às casas de rendez vous, aos lupanares, aos bordéis (pág. 99).
Por isso, estabelece um elo dialético entre a “mulher honesta” e a prostituta: a primeira se garante em função dos “pecados” da segunda. A diferença é que… a puta se liberta mais depressa da opressão masculina do que a boa esposa! Além disso, em sua concepção, as prostitutas teriam mais pureza de sentimentos e mais generosidade do que seus clientes, “trogloditas” e covardes.
Já a mulher “honrada” é uma espécie de propriedade privada do homem, que em sua época ainda podia assassinar a esposa adúltera em “legítima defesa de sua honra” – o feminicídio “em defesa da honra” foi muito criticado pelo movimento feminista em 1976, quando o milionário Doca Street assassinou por ciúmes sua mulher, Ângela Diniz. Na época, o movimento feminista manifestou-se a partir da premissa de que “quem ama não mata”, de imensa repercussão. Mesmo assim, tal prerrogativa masculina só foi derrubada 12 anos mais tarde, pela Constituição de 1988.
Para as que não se casam, o destino reserva a triste vida de solteiras assexuadas – nem tão pacífica quanto possa parecer: na Salpetrière, asilo para alienados na França, entre 1726 internas “loucas”, 1276 eram solteiras. Por razões como esta, Maria Lacerda critica duramente o que chama de “culto ao hímen”.
E a natureza se vinga, quando é desrespeitada: histeria, beatice, amor – paixão aos animais e vícios – são provas inequívocas de que nos desviamos da vida natural (pág. 161).
Logo adiante cita o cientista inglês George Drysdale, pra quem o maior erro de “nossa filosofia médica e moral” seria ignorar a importância do prazer sexual na vida de homens e mulheres.
Não imaginem os leitores que a autora despreze o amor: chega a exaltá-lo, em passagens que não mencionam o casamento. Para ela, a mais importante reivindicação feminina não deveria ser o matrimônio, mas a conquista do poder sobre o próprio corpo: a liberdade sexual, a alegria de viver… Ela defende a liberdade sexual feminina e faz um seu notável elogio ao sexo:
É pelo instinto sexual que podemos dispor de nós mesmos e dar o prazer integral, na afinidade eletiva com outro indivíduo, sem lesarmos a quem quer que seja (pág. 98).
Não creio que tenha utilizado por acaso a expressão que dá nome ao livro de Goethe: a desenvoltura de seu pensamento sugere que autora certamente tinha intimidade com os clássicos da literatura. Para ela, a única emancipação possível para as mulheres é a emancipação da mente – mas nem por isso deixa de reivindicar para as mulheres uma completa autonomia em suas escolhas de vida.
O que implicava, em um tempo em que não existiam os anticoncepcionais, na recusa da maternidade. Considera um absurdo que as mulheres construam suas vidas totalmente em função da maternidade – esta “cidadela fechada pelo egoísmo…”. A expressão deve ter causado revolta entre homens e mulheres, uma vez que a maternidade sempre foi (até hoje) considerada uma prova de generosidade e desprendimento de si. Vale observar que, embora a maternidade de fato exija dedicação, a satisfação que ela proporciona é narcísica. Não o desprendimento de si (necessário para os cuidados com o bebê), mas a exaltação da mulher que é mãe. Que cria, por sua vez, um certo sentimento de obrigação de ter filhos. Ora, a autora observa que nem todas são vocacionadas para isso: “Há mães que antes não o fossem”, escreve à página 252, numa empreitada para… “despir as mulheres do charlatanismo dos louvores incondicionais”. Afinal, a mulher deveria ser, como o homem, dona de seu próprio corpo. Defende o controle da natalidade e, antes disso, o acesso das jovens mulheres à educação sexual. À frente de seu tempo, afirma que o amor tem direito a existir “independentemente da monogamia e do casamento”! Recusa a maternidade compulsória, a imposição da monogamia e os casamentos de conveniência, sem amor. Não teve filhos, mas adotou duas crianças em seu casamento com Carlos Ferreira de Moura.
A “resolução do problema humano” consistiria, a seu ver, na educação sexual das jovens mulheres, a fim de possibilitar, com a maternidade consciente, o controle do desenfreado crescimento populacional e, com isso… também eliminar as guerras por conquistas de novos territórios. A mulher consciente pode se tornar, na expressão da autora, uma “fera da paz”, uma vez que a mais importante luta social não se serve de armas, mas de ideias.
Paradoxalmente, seu pensamento, cujas ressonâncias políticas o leitor haverá de perceber, recusa a política. Desacredita o voto, a democracia, o próprio exercício da política – conduzida por demagogos com “almas de tirano”. De Mussolini a Rui Barbosa não se salva ninguém. Atribui as críticas que o brasileiro endereça contra os poderosos ao despeito por não ter realizado sua própria vontade de poder. E revela ingenuidade ao supor que a saída para os problemas do mundo consistiria no estabelecimento do matriarcado, como se as mulheres fossem imunes às tentações autoritárias e às corrupções produzidas pelo poder.
O posfácio, escrito por Mariana Patrício Fernandes, revela que a autora fundou, em 1921 (11 anos antes da publicação do livro, em 1932), a “Liga pela emancipação intelectual das mulheres”, além de ter sugerido a inclusão da disciplina “História das mulheres” nas escolas femininas; uma proposta brilhante, jamais implantada.
Seu idealismo não se limitou à escrita. A partir de 1928, Maria Lacerda de Moura, já divorciada, viveu com o anarquista André Neblind em uma comunidade rural em Guararema (SP). Ali, levava uma vida austera, trabalhando como professora particular e, também, jornalista. Em 1935, a comunidade se desfez em função da perseguição empreendida por Getúlio Vargas, que acionou sua polícia política contra a (perigosa?) iniciativa libertária.
Depois disso, a autora viveu um ano em Barbacena e morreu no Rio de Janeiro, em 1945, onde chegou a trabalhar na Rádio Mayrink Veiga em um programa sobre… astrologia!
Afinal, a liberdade preconizada por Maria Lacerda para as mulheres de sua época exigia, entre outras coisas, uma grande capacidade de improvisar a própria vida para não ser condenada ao inexorável destino do casamento. A autora provou, não sem a necessária dose de sofrimento, que era capaz de sustentar a parceria que ela mesma propunha: entre liberdade, coragem e improvisação.
Maria Rita Kehl é psicanalista, escritora, doutora em Psicanálise pela PUC-SP e autora, entre outros, de O tempo e o cão (2010).