O que quer dizer “avanço eleitoral da direita”?
Convém não exagerar com essa história do avanço do bolsonarismo nas eleições municipais (Foto: Alan Santos/PR)
Que partido perdeu? Qual ganhou? Esta é pergunta, meus amigos, para a qual vocês devem ter ouvido mil respostas, desde o fim do primeiro turno. Com algumas hipóteses muito veementes sobre tudo. Vou me concentrar naquelas sobre a vitória do centro e o avanço da direita.
Desde a restauração do pluralismo partidário brasileiro, depois do fim da ditadura, o Brasil sempre teve um conjunto grande de partidos de direita. No segmento de mercado eleitoral que veio da Arena surgiram grandes partidos, mas também houve uma fragmentação política enorme. De forma que, grosso modo, há dois blocos tradicionais na direita brasileira. O primeiro é o da direita clássica, onde estão, justamente, os herdeiros do PDS, o DEM e o PP e, enfim, o PSD que surgiu exatamente para ficar com os eleitores do DEM na grande crise eleitoral do partido em 2008 e 2012. O PSD, aliás, firmou-se nesta faixa de mercado e em apenas três eleições municipais virou o terceiro maior partido do país em número de prefeituras conquistadas. Neste bloco vai também o PL (PR), que já governou com Lula e se mantém há mais de 20 anos entre os dez maiores partidos. O bloco tem hoje cerca de 40% das prefeituras brasileiras, aumentando 11% em quatro anos, o que é bastante. Mas esse valor era 33% em 2000, quando o PSD ainda nem existia, o que significa que demorou 20 anos para aumentar 7%.
E tem a outra direita, a que era a arraia miúda dos que vieram da Arena. A direita número dois é o varejo fisiológico e conservador em quem ninguém prestava muita atenção, uma vez que sempre esteve à disposição de quem governasse e pagasse bem em cargos e mandatos. Foi capturada pelo centro e, depois, pela esquerda, desde 1995, mas já havia governado com Collor e Itamar Franco, assim como traiu Dilma para apoiar o impeachment, governou com Temer e enfim, juntou os trapos com Bolsonaro. Quem liderou essa faixa de mercado foi o PTB, mas agora o carro-chefe é o Republicanos (ex-PRB). Dentro deste grupo é que foi incubada a extrema-direita bolsonarista, que converteu uma parte dela em direita ideológica, mas só em 2017, e apenas uma fração. A extrema-direita ideológica deve ter conquistado entre 6% e 10% das prefeituras, e olhe lá. E embora nunca tenhamos visto tantos votos para partidos chamados Avante, Podemos, Patriotas e Republicanos, ou siglas importantes na onda conservadora de 2018 como PSC e PSL, por mais que esse bloco tenha crescido, em suma, não representa mais de 15% das prefeituras. Convém, portanto, não exagerar com essa história do avanço do bolsonarismo nas eleições municipais.
O dado mais preocupante talvez seja o que está acontecendo com o antigo centro, em que neste século eu coloco o MDB, claro, e o PSDB, que vieram da mesma cepa. O PSDB saiu do MDB para ocupar a centro-esquerda, mas ficou por ali mesmo, mais centro que esquerda. E o MDB tomou uma decisão, desde metade dos anos 1980, de ser basicamente um partido fisiológico (ou pragmático como eles preferem), que trocou o sabor ideológico que já teve pela busca de volume. E sempre esteve metade dentro de qualquer governo e metade na oposição, negociando cada voto. Por fim, vai aí o PPS, que nasceu de esquerda, virou linha auxiliar do PSDB e lhe seguiu o destino até virar Cidadania. O centro antigo, é bom que fique claro, desde 2016 virou a Nova Direita, base de apoio de Temer e, depois, de Bolsonaro. Sua dimensão é declinante: já teve 43% das prefeituras em 2000, neste ano conquistou 27%.
Assim, com o centro deserto, temos três direitas. E uma esquerda. Dividida e se pegando a tapas. PT, PSB e PDT sempre lideraram o bloco, que já teve 9% das prefeituras em 2000, chegou a 28% no auge da força do PT em 2012, e agora tem cerca de 15%. Sim, o PT jogou fora tudo o que ganhou com os 13 anos no governo e retornou ao que tinha no final do século passado.
O que o número de prefeituras
nos diz em 2020? Que a direita
clássica é o bloco ideológico
mais forte e, que, juntos, os seus
componentes comporiam uma
formidável força eleitoral.
Acontece que nunca jogaram de maneira articulada, são concorrentes pelo mesmo tipo de eleitor e jamais lideraram eleições presidenciais, contentando-se em serem forças auxiliares. E sempre foram fisiológicos, no modelo do antigo PMDB, prontos para compartilhar poder Executivo em troca de apoio legislativo. Não é o centro, é a direita à venda. Não é à toa que tanto Ciro Gomes quanto Luciano Huck apareceram para pescar nesse barril.
Por fim, o varejo fisiológico ainda mais à direita cresceu inegavelmente e hoje tem a mesma dimensão do bloco da esquerda como terceira força. Mas está dividido entre um pequeno núcleo ideológico, que apoia Bolsonaro por convicção, e um outro grupo que se alimenta à sua sombra enquanto lhe for conveniente, como fez com qualquer governo desde a restauração da democracia. Se a leoa sangra, viram hienas, como soe acontecer.
Por que, então, se tem a impressão de que a direita cresceu? É que até 2012 a esquerda era visível e havia um centro forte. E a esquerda e o centro controlavam o sistema, sobretudo depois que FHC inventou o método de sair do centro para ir capturar um partido grande da direita clássica (no caso, o DEM) e Lula ter repetido o feito para si (com o PL) e para Dilma, onde foi logo se juntar ao PMDB. Por muito tempo, sobrava para a direita barra pesada apenas uma franja de 5%.
Aí veio 2013, veio o impeachment, veio a Lava Jato e a coisa se inverteu, com quatro fatos: 1) A esquerda e o centro perderam o controle sobre a direita clássica, que foi capturada pela extrema-direita; 2) O centro virou uma nova direita e agora, em vez de duas, temos três direitas no panorama; 3) A direita ideológica cresceu e, assegurada a presidência, exerce uma considerável força de atração sobre as duas direitas fisiológicas, que, juntas, são hoje mais de 50% do sistema. Isso sem mencionar a atração que exerce sobre o PSDB e o MDB; 4) Fragmentada e reduzida, a esquerda é um pote até aqui de mágoa.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)