“O que ele faz, o Sr. Godot?”
Alexandre Borges e Marcelo Drummond nos papéis de Didi e Gogô (Foto: Bob Sousa)
Em tempos nos quais o absurdo usurpa a inteligência e a subjuga com uma lógica estarrecedora, e a tríade histérica “paralisia, cegueira, surdez” estende avidamente seu manto sobre qualquer tentativa de racionalidade, sufocando-a por completo, nada mais pertinente do que atender ao chamado do Sr. Godot. Ou Godet. Ou Godin. E esperar o que ele tem a dizer. Ou não.
A abusada desconfiança de que o emblemático personagem concebido pela dramaturgia de vanguarda do século 20 não tem mais nada a dizer está na base da recente encenação de Esperando Godot [no fim do mundo], dirigida por José Celso Martinez Corrêa para o Teatro Oficina. Como sói acontecer com os materiais dramatúrgicos mais diversos que passam pelas mãos do grande heresiarca do teatro brasileiro – 85 anos completados em março último –, o mais famoso texto teatral de Samuel Beckett (1906-1989) é escrutinado, compreendido e reverenciado na montagem em questão até os limites de ser devorado antropofagicamente. Uma vez mais, como é próprio da estética do grupo.
Espécie de Midas da iconoclastia, Zé Celso transforma tudo o que toca, e que lhe toca, em ruína. Não simplesmente para aniquilar as obras-primas da arte e da cultura sobre as quais se ergue um certo senso de civilização – 69 anos depois de ter estreado no pequeno Théâtre de Babylone, em Paris, eis que o texto violentamente atacado em seu alvorecer por público e crítica ganha o epíteto, quase um epitáfio, de clássico –, e sim para lhes derruir a aura de intocáveis e lhes remover a pátina do tempo, responsáveis por fazer a obra dizer sempre do mesmo jeito as obviedades de tudo.
Pois bem, “exu, senhor das artes cênicas” que é (título que lhe foi conferido pela mãe Stella de Oxóssi, do Ilê Axé Opô Afonjá, na Bahia), Zé Celso pratica uma teatralidade fertilizadora, copulando agora com o texto que aceita toda espécie de alegoria e escapa laconicamente de todas elas: Esperando Godot, do dramaturgo, romancista e poeta irlandês cujo universo parece tão distante da uzyna de te-ato encarnada pelo diretor e do qual, simultaneamente, ele se apropria tão bem, ecoando a máxima oswaldiana assim manifesta: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”.
A encenação começa por cortejar o original, que, ao lado de Fim de partida (1957) e Dias felizes (1961), constitui a chamada trilogia do pós-guerra. Se Beckett estava, ainda que de modo bastante cifrado, reagindo à ameaça de destruição total do planeta pelo emprego da energia atômica, Zé Celso atualiza tal sedimento apocalíptico pela via da crise climática cada vez mais premente nos modos de vida contemporâneos, retratada nas imagens de abertura do espetáculo. Estamos vivendo – denuncia a videoinstalação de Ciça Lucchesi – um tipo de progresso exclusivamente material, no qual o ser humano cedeu seu lugar à técnica, que tiraniza todas as esferas da vida social. Se para a arte, a cultura, a educação e a comunicação, sequestradas hoje pelo capitalismo tecnocrático, cada vez menos importa ao homem o poder de saber, a ciência que sustenta acriticamente o capital fez esse homem incipiente trocar o saber pelo poder. De destruir.
Daí a perspicácia de Zé Celso em dotar Gogô e Didi – interpretados, respectivamente, por Marcelo Drummond e Alexandre Borges (ambos jogando muito bem com suas personas e os personagens) – de uma aura lúdica, poética, essencialmente metateatral (presente no texto original, mas que nem sempre as encenações permitem brotar) que é um vigoroso ataque a nossa indiferença às coisas que aí estão. “A poesia”, provoca o bardo da marginália Torquato Neto, “é o pai da artimanha de sempre: quentura no forno quente do lado de cá, no lar das coisas malditíssimas”. O outro par de personagens, Pozzo e Felizardo (Ricardo Bittencourt, em contundente atuação; Roderick Himeros, calculadamente cerebral), nos coloca diante do domínio do terror, denunciando também nossa apatia diante da brutalidade do mundo. Sem intrepidez, perdemos a capacidade de agir e de nos revoltarmos.
Sem intrepidez, Zé Celso não teria mudado o final da peça. O mensageiro, galantemente interpretado por Tony Reis, anuncia que o Sr. Godot não virá porque “pegou um Exu” – o orixá não domesticável, que detém o poder de transformação e do movimento. A encenação assim termina por se afastar do original, tendo a ousadia de dar nomes às coisas que, nos tempos que correm, parecem tão difíceis de descrever, ao mesmo tempo que, ambivalentemente, procura penetrar no íntimo da poética beckettiana. Ao contrariar o hábito de encenar um Godot que sempre renovará a promessa de sua vinda, a versão de Zé Celso clama pela nossa emancipação. Utopia, esperança e poesia não aprisionam o espírito. E a seiva poética do Oficina continua lá, na Cesalpina plantada por Lina Bo Bardi, que não somente diz respeito à “arvore desfolhada” do original, mas também parece contradizê-la. O que seria do planeta sem árvores? O que seria do Oficina sem a Cesalpina? O que seríamos nós sem as coisas que urgem ser contrariadas?
Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Unirio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero, onde atualmente é diretor.