O professor de piano
por Marília Kodic
Para o pianista e maestro russo Vladimir Ashkenazy – 76 anos e dono de seis Prêmios Grammy –, reconhecimento profissional é algo que conhece desde o início da carreira.
Tendo iniciado seus estudos aos 6 anos de idade, ganhou o segundo lugar na Competição Internacional de Piano Fryderyk Chopin, em Varsóvia (Polônia); e, aos 19 anos, o primeiro lugar na Competição Musical Rainha Elisabeth, em Bruxelas, na Bélgica.
Neste mês, Ashkenazy estará à frente da Orquestra Sinfônica Alemã de Berlim, que dirigiu entre 1988 e 1999 e à qual agora volta como regente convidado, para quatro apresentações em São Paulo, para abrir a temporada 2012 do Mozarteum brasileiro.
Entre as performances, de 12 a 15 de maio, está uma exclusiva para crianças. “Acho ótimo levar música às pessoas muito jovens, e isso faz muito bem a elas. Podem não perceber na hora, mas nunca vão se arrepender”, diz.
Na entrevista a seguir, concedida à CULT por telefone de sua casa, na Suíça, Ashkenazy fala da infância passada na Rússia comunista, sobre como a música clássica pode ajudar na educação e da razão por que reduziu drasticamente o número de performances públicas ao piano.
Além disso, ressalta as dificuldades financeiras sofridas pelas orquestras ao redor do mundo: “É uma vida muito difícil, pois nunca se sabe se vão poder continuar existindo no próximo ano”.
CULT – O sr. mantém ligações com diversas orquestras ao redor do mundo. É importante não se acomodar a apenas uma?
Vladimir Ashkenazy – Se tenho uma boa relação com uma orquestra e é importante para ela viajar, vou junto. Se o Brasil quer ter uma orquestra alemã e isso é possível financeiramente, por que não? A música é algo internacional.
Não é necessariamente uma prioridade minha, mas fico muito feliz em viajar. Acho que é muito positivo. Basicamente, não vejo por que as pessoas deveriam ficar em só um lugar.
Quais as diferença entre elas?
Tento atingir um padrão que me satisfaça; não me importo com a nacionalidade, com as diferenças. O importante é que a qualidade musical permaneça em alto nível, que Beethoven soe como Beethoven e Tchaikóvsky como Tchaikóvsky.
O senhor mais de uma vez se referiu a si mesmo como sendo “nada especial”. Como se vê no cenário da música clássica?
Em nenhum lugar em particular. Já interpretei um repertório muito vasto na minha vida, tento fazer meu melhor e não me preocupar com minha posição.
Como passou de pianista a maestro?
Meu amor pela orquestra sinfônica vem lá do começo da minha vida, desde quando me dou por gente. A primeira vez em que ouvi um concerto eu tinha sete ou oito anos, e fiquei absolutamente maravilhado com o som daquilo. Foi em Moscou. Era inacreditável, achei que era a melhor coisa da vida.
Fui a muitos concertos – gastava toda a minha mesada neles e em discos de orquestras. E então, quando passei a viajar para o Ocidente, comecei a comprar muitas e muitas partituras que não eram disponíveis na Rússia.
Mas me tornei um pianista de sucesso, e nunca me ocorreu que eu poderia reger uma orquestra. Nunca. E meio que aconteceu, pouco a pouco, mesmo que eu não estivesse particularmente ativo para fazê-lo acontecer. Veio naturalmente.
Regentes que nunca atuaram como instrumentistas carecem de certas habilidades?
É impossível dizer. Os dons são distribuídos de tal modo que é muito difícil avaliá-los. Para maioria dos regentes, sentar ao piano e ter algumas lições básicas de como tocar certas notas ou melodias não é tão difícil.
Aliás, após algumas semanas, qualquer um poderia tocar algo simples. Não é necessário ser um grande profissional.
Embora treine piano diariamente, o senhor, à semelhança de outro grande pianista, Glenn Gould, reduziu bastante o número de performances públicas. Por quê?
Por uma série de razões. Primeiramente, reger se tornou uma ocupação muito central para mim nos últimos 15 anos. Em segundo lugar, não tenho muito tempo para ensaiar para um concerto. Também acho que pode ser prejudicial [à saúde].
E, você sabe, há muitos casos em que instrumentistas tentam tocar quando estão numa idade muito avançada e, com muita frequência, não podem fazê-lo tão bem por conta de causas naturais.
Não pertenço à mentalidade de “devo tocar não importa o que aconteça”. Não gosto disso. Se eu sentir que minhas habilidades para tocar publicamente não são as mesmas de 40 anos atrás, não vou fazê-lo. Sou muito realista quanto a isso.
Gravo bastante, mas isso é outra história, porque você não precisa tocar em público. Você grava em um estúdio a mesma peça musical, por duas ou três vezes, até atingir o seu melhor. Ensaio todos os dias por essa razão.
Seu sobrenome se refere a judeus provenientes do Leste europeu…
Minha linhagem não é tão simples. Meu pai era judeu, mas minha mãe era russa ortodoxa, uma de sete irmãs e um irmão em uma pequena cidade chamada Gorodets. Ela me batizou numa igreja russa, então não posso ser considerado judeu. Sou um cristão russo, basicamente.
Mas não sei muito sobre minha parte “Ashkenazy” porque cresci num ambiente muito russo; não sei qual minha ligação com os judeus.
Ao longo de sua juventude na Rússia comunista, era difícil ter êxito como músico? Havia apoio do governo?
O governo soviético controlava absolutamente tudo. A educação, a indústria, a agricultura, tudo era 100% controlado por aqueles que estavam no topo. Era muito difícil estar sob o controle de uma mentalidade comunista o tempo todo.
Mas você não pode aplicar ideias comunistas à música. O partido (comunista) não podia nos dizer para tocar Mozart ou Chopin assim.
Então, não tive problemas em estudar muito bem aquilo que eu precisava estudar. E o governo apoiava financeiramente o conservatório. Tínhamos aulas semanais de marxismo e leninismo, por cerca de quatro horas. Mas o resto era música.
Então a União Soviética não perturbou nossa educação musical, o que foi ótimo.
Mas, física e espiritualmente, é claro, o resto de nossas vidas era muito restrito. Na filosofia, na literatura, em todo o resto era muito difícil. Então nós, músicos, éramos uma exceção.
Desde 2000, o senhor é diretor da Orquestra Jovem da União Europeia. Como avalia essa experiência?
É maravilhoso trabalhar com eles. Quando fazem testes para entrar, há 40 ou 50 pessoas para cada posto. Então dão tanto valor e querem tanto dar o seu melhor, após entrarem, que é uma alegria estar à frente deles.
Algumas pessoas dizem “ah, eles são jovens, você precisa ensinar tudo a eles”. Bobagem! Eles já sabem muito, são muito profissionais e capazes.
O senhor irá reger no Brasil um concerto exclusivamente para crianças. O que acha dessa iniciativa?
Acho ótimo levar música às pessoas muito jovens, e isso faz muito bem a eles. Eles podem não perceber na hora, mas nunca irão se arrepender.
Por que escolheu O Quebra-Nozes, de Tchaikóvsky, para essa apresentação?
Não se deve tocar nada complexo para crianças. É como em qualquer matéria – na matemática, você começa com aritmética, na língua, com o “abc”. Na música também, você começa com algo acessível e compreensível e então passa para coisas mais complicadas.
Depois, começam a usar as imaginação e desenvolver suas próprias atitudes e avaliações acerca do que estão ouvindo, e a música em si se torna uma linguagem. É algo emocional.
Como a música pode ajudar na educação dos jovens?
Sabe, nunca me esquecerei de quando morava em Moscou, e um amigo que era professor em uma escola muito simples queria introduzir a música que amava àqueles jovens, de 8 a 17 anos. Ele pediu permissão ao diretor para ter uma hora semanal de educação musical, e o diretor permitiu, no último dia da semana.
Na primeira aula, ele começou com algo muito acessível, talvez O Lago dos Cisnes, e alguns meninos e meninas falaram “ah, isso é um monte de besteira”. Então ele disse que, se quisessem ir embora, podiam. E alguns o fizeram – metade.
Mas cerca de 20 alunos ficaram. Eles estavam absolutamente absorvidos na música. E, nas semanas seguintes, ficaram em todas as aulas. No fim, todos se tornaram admiradores de música, enquanto a outra metade, não.
Mas mais interessante é que, quando chegou o período de provas – literatura, matemática, física –, eles se saíram melhor do que aqueles que não ficaram nas aulas. Isso é fantástico. E acontece em toda escola, é um fato comprovado. Aqueles que se interessam pela arte, em geral, se dão melhor em todas as outras matérias.
De onde vem o suporte financeiro para a música erudita? São majoritariamente iniciativas públicas ou privadas?
Historicamente, durante séculos e séculos, a quantidade de pessoas interessadas em nossa música – não falo nem financeiramente, mas emocionalmente – sempre foi apenas uma pequena parcela da população. Para apreciar a música, você precisa estudar um pouco.
E, para produzi-la e para que os músicos possam se sustentar, sempre foi preciso o apoio de alguém de cima: pessoas ricas, aristocratas, governos. Sem esse apoio, as grandes orquestras sinfônicas não poderiam existir.
Porém, os governos geralmente acreditam que não vale a pena providenciar esse sustento para a música clássica, pois não há retorno para eles. Não irá ajudá-los nas eleições ou dar a eles qualquer retorno financeiro. Então a negligenciam.
Pode dar alguns exemplos onde isso acontece?
Em Londres, somente a Orquestra Sinfônica da BBC é amparada oficialmente. Todas as outras têm grandes problemas para se sustentar. Precisam viajar, conseguir patrocínio privado… É uma vida muito difícil, pois nunca se sabe se vão poder continuar existindo no próximo ano.
E em muitos países acontece o mesmo. Na Itália, algumas orquestras se extinguiram nos últimos anos por falta de apoio governamental. Nos Estados Unidos só há apoio privado, e, quando isso não existe, as orquestras vão à falência – aconteceu diversas vezes.
Há algumas exceções. Na Alemanha, desde que era dividida em pequenos reinos, cada poderoso local dava um pouco de apoio em seu território, e isso se reflete na Alemanha de hoje, em que o governo apoia a arte. Cada vez menos, é verdade, mas o apoio existe.
Na França, o governo também apoia as orquestras. Eles são muito bons em defender sua presença cultural ao redor do mundo e eu os aplaudo por isso.
Diz-se muito que o público de música clássica vem sofrendo uma queda significativa. Concorda?
Não sei. Nos meus concertos, não vejo problema. Vejo que salas de concerto estão sendo construídas em muitos países, como na Suíça e Dinamarca. Você não as constrói se a audiência está diminuindo. Mas não posso responder a essa pergunta sem a devida pesquisa.
O senhor é um artista exclusivo da gravadora Decca há 50 anos. Sempre teve liberdade nas decisões?
Sempre conversamos sobre as coisas. Não posso fazer algo completamente fora desse mundo, eles diriam “pense de novo, pode ser que não venda nada” [risos]. Não, sou muito cuidadoso com isso, nunca na minha vida insisti em nada, pois entendo que os elementos econômicos são importantes também. Sempre trabalhamos na base da unanimidade.
Conhece algo da música clássica brasileira?
Sou péssimo com nomes, eu os esqueço. E também é difícil para mim achar tempo para ir prestigiar amigos e outras pessoas; estou sempre ocupado comigo mesmo.
Os concertos, ensaios e viagens tomam todo o meu tempo e energia, então é muito difícil fazer qualquer outra coisa.
Mas me divirto sempre. Admiro o caráter das pessoas no Brasil. Acho-as muito desinibidas, calorosas, amigáveis e extremamente comunicativas. Sempre me sinto acolhido.
12 e 13/5
Onde: Auditório do Ibirapuera
Quanto: gratuito
Info.: (11) 3629-1075, www.auditorioibirapuera.com.br
14 e 15/5
Onde: Theatro Municipal de São Paulo
Quanto: R$ 110 a 300
Info.: (11) 3397-0300, www.prefeitura.sp.gov.br