O prazer e a dúvida
Contos de André Sant’Anna exploram a tensão entre o imperativo transgressor e a reprodução do óbvio
Tony Monti
Há uma anedota que diz que, quando um budista pergunta a outro o que é o budismo, se o segundo souber a resposta e o primeiro a entender, nenhum dos dois entende nada de budismo. Assim como o budismo, a arte escapa às definições mais simples. Conforme uma concepção difundida pelo menos desde meados do século 19, a arte tem como fundamentos a valorização da novidade e do estranho e a negação de modelos preestabelecidos. Por isso, contrasta com o mundo da idolatria e da reprodução em série.
O novo livro de André Sant’Anna, Inverdades, explora um espaço possível nesta tensão entre o imperativo transgressor e a reprodução do óbvio. Trata, em todos os contos, de personagens conhecidos, como Lula e os Beatles, em situações que se afastam daquelas estritamente relacionadas a suas imagens públicas. Como em seus livros anteriores, a frase curta, a sintaxe direta, a repetição de palavras e a reiteração de ideias ajudam a construir um cenário banal, em que tudo é simples e visível. No entanto, as histórias de Inverdades se desenvolvem no contraponto dessa sugestão formal.
Lula, Ronaldo e os Beatles
O procedimento utilizado para adicionar profundidade a esta estrutura em que tudo parece superfície é retratar a pessoa célebre em um momento íntimo. Como estratégia, a princípio, não difere do que fazem as revistas de fofoca. Parcela do aparato industrial, tais revistas oscilam entre o elogio (o detalhe íntimo, já higienizado, ajuda a compor a imagem pública da celebridade) ou a condenação do possível comportamento transgressor. Desse modo, por apresentarem de antemão um veredicto sobre o dilema, funcionam a serviço de uma moral prescritiva. Nos contos de Sant’Anna, ao contrário, ou não é feito o julgamento dos personagens – o que mantém a tensão entre a imagem pública esterilizada e as dúvidas íntimas – ou o julgamento é feito em favor de um aspecto usualmente condenado. É introduzida, assim, a permissão à dúvida e ao questionamento do habitual, em lugar do discurso que tende ao monológico e ao dogmático.
Exemplo claro da dúvida, que recoloca a personalidade em uma dimensão humana, é a hesitação de Lula quando reflete sobre seus dois mandatos: “Luiz, diante do espelho, era ele, Luiz? Ou Luiz era seu próprio adversário?”. E o narrador conclui, no tom informal que marca quase todo o livro: “muito louca a consciência do Luiz”.
Em um conto que complementa a ideia do anterior, o jovem Ronaldo é apresentado não como o jogador de sucesso, mas como o rapaz que não foi selecionado para atleta de clube de futebol. A dúvida é transfigurada em uma certeza trágica, a de que “só os fenômenos são felizes”. Por não ter sido aprovado no critério social único, o de ser uma celebridade televisiva, sua existência humana fica sem significado: “se ele, o Ronaldo, nem existisse… tanto faz”. A ele é vedada a dúvida, a possibilidade de imaginar um caminho em que não esteja, desde sempre, derrotado.
Valorização da revolta
A graça desses textos vem às vezes do prazer de ver uma regra subvertida. Os Beatles fumando maconha no banheiro da rainha são bom exemplo dessa possibilidade de ser livre em um espaço simbólico onde as formalidades são mais rígidas e opressoras. Fica a dúvida, no entanto, se essas pequenas transgressões de modelos são mais a contestação positiva de uma estrutura ou a face obscena da regra, a sobra permitida que faz a vida tolerável apesar da enorme inércia e injustiça da máquina do mundo.
O conto que me parece o mais agudo e bem elaborado do livro responde parcialmente a essa questão em favor da hipótese da manutenção da imobilidade das estruturas. Uma sequência sobre Nelson Rodrigues – que André Sant’Anna declara admirar – é contraposta a outra em que um “eu” (imagem especular ficcional do André-autor) reclama da angústia devido a duas impossibilidades: escolher uma vida que não seja a mais óbvia e eliminar os gases que fazem seu intestino doer. Em aproximação de registros muito distantes, a ideia lembra o bloqueio das condições de emancipação do homem no capitalismo administrado, anunciado há muito por Adorno e Horkheimer. Assim como Ronaldo não vê sentido e não consegue imaginar uma existência que não seja a da celebridade, o narrador desse conto não encontra caminho que não seja o do “homem de bem no ano de 2000”. “Nelson Rodrigues poderia morrer coberto de fezes e envolto por gases. Seria espetacular. Mas eu não. Seria humilhante.” Em um tom menos resignado que o de Ronaldo, o narrador termina ainda com a valorização da revolta, mas impedido de fazer a passagem ao ato: “Eu sou um bosta”.
Inverdades
André Sant’Anna
7Letras
68 págs.
R$ 22