O pesadelo da modernização

O pesadelo da modernização

Relançamento das obras de Faulkner no Brasil mostra atualidade de um escritor que lançou mão da fragmentação da narrativa e de personagens que vivem isoladas em mônadas impenetráveis para representar o fim da “fase heróica” da burguesia americana. Leia, neste dossiê, um ensaio do romancista Cristovão Tezza sobre o recém-publicado Palmeiras selvagens, trechos inéditos da tradução de O som e a fúria e fragmentos de entrevistas em que Faulkner fala do ofício da escrita.

Em meados dos anos 40, após o final da guerra, a grande maioria dos romances do escritor norte-americano William Faul­kner estava fora dos catálogos das principais editoras. Desde sua estréia literária no início dos anos 20 – com The marble faun (1924), um volume de poemas, e Soldier’s pay (1926), seu primeiro romance, publicado devido à influência do amigo Sherwood Anderson, escritor bem mais conhecido –, Faulkner havia vendido pouco. Durante toda a década de 30, quando escreveu suas obras-primas – O som e a fúria (The sound and the fury, 1929), Enquanto agonizo (As I lay dying, 1930) e Luz de agosto (Light in August, 1932) –, seu nome era praticamente desconhecido do grande público: seus malabarismos técnicos e o surpreendente emaranhado narrativo que caracterizava sua prosa haviam atraído a atenção de parte da crítica mais refinada, mas tornavam seus romances muito “difíceis”.

Sua estadia na capital do cinema norte-americano, aonde chegou em 1932 para assinar contrato com a MGM, havia resultado em retumbante fracasso. Faul­kner, mais do que qualquer outro dentre os vários romancistas que foram atraídos pelos altos salários oferecidos pelo cinema, simplesmente odiou Hollywood. A MGM o contratou para trabalhar na revisão e preparação de diversos projetos, que nunca foram filmados. Despediram-no no ano seguinte. Voltou ao Mississippi e escreveu um de seus melhores romances – Absalom, Absalom! (1936) –, que também não vendeu. Voltou para Hollywood para trabalhar na Fox. Seguiu-se nova demissão em 1937.

Entender como esse escritor “regionalista” e “difícil” ganhou o Prêmio Nobel em 1950 e foi reconhecido como o grande romancista “nacional” norte-americano significa compreender os altos e baixos da complexa política cultural do modernismo, num país cuja confiança no progresso prometido com o fim da Guerra Civil e o início do novo século havia sido abalada pela Depressão de 1929, marco inicial de uma crise que modificaria radicalmente o cenário ideológico do pós-guerra. Para os puristas amantes da “literatura” e para a crítica reacio­­nária, a “guinada à esquerda” que caracterizou parte importante da produção cultural do período po­de ser resumida numa história de conversões, enganos e decepções. Segundo essa perspectiva, tratou-se de um infeliz retorno ao “realismo”, que por algum tempo drenou a riqueza da experimentação estética modernista de seus impulsos mais importantes para aproximar as artes do movimento operário, da batalha ideológica contra o fascismo e do “esforço comunista”, logo esvaziado pela descoberta dos horrores do stalinismo. A história verdadeira, entretanto, é bem diferente. Tratou-se, na verdade, de uma rica e variada trajetória que envolveu inúmeras tentativas de traduzir uma crise econômica e política nos termos de uma crise cultural. Alguns dos protagonistas deste capítulo da cultura norte-americana foram artistas que viram a crise de 1929 como ponto de partida para um novo modo de compreender a sociedade de seu tempo, através da criação de um novo tipo de ficção histórica. De fato, a quebra da Bolsa não apenas coincidiu com o retorno de diversos artistas americanos “exilados” na Europa, mas também marcou o início de diversas tentativas de discutir temas e assuntos “americanos”, trabalhando sobre a herança cultural local num novo patamar estético e reflexivo. A trajetória de Faulkner flerta e se confunde com essa história.

 A crise da ação individual

Até hoje o enfoque crítico da maioria dos estudos sobre a obra de Faulkner recai sobre suas espantosas conquistas formais, especialmente sua manipulação do ponto de vista e da estruturação temporal não-linear do enredo. A variedade de narradores que apresentam diferentes versões e pontos de vista a respeito dos fatos que montam a narrativa representa uma dificuldade de leitura e um desafio crítico dos mais complexos. Em O som e a fúria, para tomar um exemplo conhecido, não há um enredo propriamente dito, mas uma acumulação de episódios e ações contadas por diversos narradores – um deles é Benjy, um idiota – em quatro partes cronologicamente embaralha­das, pequenas peças disformes de um quebra-cabeça que o leitor só pode começar a entender retrospectivamente, após o final do romance. Em Enquanto agonizo a audácia da arquitetura geral é ainda maior: o romance está dividido em meia centena de pequenos capítulos, cada um deles com o nome da personagem que mo­nologa. A descentralização narrativa faz com que o leitor descubra aos poucos e com dificuldade o que está acontecendo: trata-se das peripécias de uma família de lavradores pobres que viaja para enterrar a mãe morta. Enquanto o corpo de Addie apodrece no trajeto para a cidade de Jefferson, seus filhos e marido refletem sobre os eventos de suas vidas miseráveis. Para espanto do leitor menos avisado, um dos narradores é o próprio cadáver da mãe.

Essa complexidade tem sido encarada, na maior parte dos estudos sobre Faulkner, através de abordagens formalistas e este­tizantes: o desafio seria descrever a sofisticação da técnica. Tais explicações, entretanto, contam apenas parte da história. Pois o avanço de Faulkner tem a ver justamente com os modos através dos quais suas técnicas literárias deram conta de assunto delicado: o fim da “fase heróica” da burguesia americana.

Vale a pena lembrar que o auge do romance europeu do século anterior havia dependido de uma estruturação particular do enredo, de caráter essencialmente dramático. Temos no centro da ação um herói que vence as dificuldades da vida através de suas ações individuais, todas desenhadas no âmbito do espaço privado. O modelo, retirado da prática teatral burguesa a partir do século XVIII, encontraria no romance um espaço privilegiado para seu desenvolvimento. O romance, forma artística mais popular entre a burguesia ascendente, torna-se o lugar onde se discutem os novos desafios do cotidiano, e a estruturação do enredo em exposição inicial/conflito/clímax/resolução dá notícia da confiança inabalável da burguesia na sua capacidade de resolver suas mazelas, agora universalizadas e situadas no centro das preocupações sociais, políticas e econômicas de toda uma época.

Ora, quando outras parcelas da sociedade – cada vez mais insatisfeitas – se deram conta de que os interesses burgueses não eram universais, a perspectiva heróica que havia colocado a ação do indivíduo burguês no centro da produção literária se revelou como mentira deslavada. Quando essa “fase heróica” acabou por levar a duas Guerras Mundiais, a renovação das artes se tornou obrigatória. A partir dessa cri­ se, que prepara o modernismo, parcela importante da criação literária mais conseqüente irá se debruçar justamente sobre o desafio de introduzir outras perspectivas mais variadas, que possam questionar as ações que haviam levado à crise presente e descrever melhor os assuntos que passaram a interessar. 

Do outro lado do Atlântico, as perspectivas de progresso pareciam ilimitadas. Depois que a Guerra Civil havia eliminado os últimos resquícios de um sistema social, político e econômico que atrasava a industrialização em massa do país, só faltavam os rios de dinheiro que seriam ganhos nas duas Guerras Mundiais para garantir a hegemonia dos Estados Unidos no cenário mundial. Os ideais democráticos de liberdade, igualdade e progresso da “República de Lincoln” seriam, enfim, realizados na mais importante nação do mundo. A cultura de massas nascente se encarregou de ressuscitar, principalmente no cinema, a centralidade da ação trans­formadora, que vence obstáculos, condição necessária para falar dos novos projetos.

Porém, para o sul norte-americano, aniquilado na Guerra Civil, forçado a modernizar uma sociedade que mal se havia “abur­guesado” e ainda preso às tradições sulinas mais antiquadas (temas de épicos como …E o vento levou), os resultados logo de início se revelaram desastrosos. Sua estrutura social, econômica e política permanecia essencialmente rural, estruturalmente des­prepa­rada para lidar com os desafios e ideais da industrialização rápida que haviam se tornado o slogan dos ideólogos da modernização. Montava-se, assim, o cenário que viria a mobilizar as simpatias e os esforços técnicos e temáticos de Faulkner.

Mas tampouco no norte mais avançado a situação se revelou mais promissora. A crise de 1929 veio para pôr um freio no “trem da História” e para denunciar os excessos de uma modernização que havia saboreado avidamente as benesses do mercado livre.

 A crise da modernização

Para a geração de artistas que chegava à maturidade nos anos 30 e 40, o grande desafio foi a tentativa de forjar uma linguagem que pudesse dar conta da experiência do declínio e da queda da “Repú­blica de Lincoln”. Muitos dos nomes mais importantes são bem conhecidos entre nós: Ernest He­ming­way, John Steinbeck, F. Scott Fitzgerald, John Dos Passos, Eugene O’Neil, Orson Welles. Para escritores como o Fitzgerald de O grande Gatsby (1925), o tema adquire um misto de urgência e nostalgia e resulta num quadro dos tempos em que “gigantes ainda andavam pela terra” (embora tropegamente, já com bastante dificuldade). Mas para diversos artistas – todos os da lista acima e muitos outros –, tratou-se de vincular pesquisa estética a um esforço explicitamente político, cuja intenção era pensar numa alternativa viável para um capitalismo cuja caduquice dava mostras inequívocas. Criava-se, assim, aquilo que o grande crítico inglês Raymond Williams chamou de “estrutura de sentimento”, uma “visão de mundo” vinculada a uma possibilidade real de criação de um público afeito e preparado para apreciar uma arte política e refinada, que aliava reflexão histórica e experimentação estética. Algumas das obras-primas do período são fruto desse esforço: o romance As vinhas da ira (1939), de Steinbeck, ganhador do prêmio Pulitzer, que acompanha os sofrimentos de uma família pobre de Oklahoma que perde suas terras na Depressão e vai para a Califórnia em busca de trabalho, e o filme Cidadão Kane (1941), de Welles, que acompanha a trajetória fascista do magnata da imprensa William Randolph Hearst durante a Depressão e as duas Guerras Mundiais, são apenas dois exemplos conhecidos.

Apesar da exceção honrosa de As vinhas da ira, não foram muitos os esforços para incluir o tema da migração no repertório dos temas literários dessa geração. Mas o assunto deixava de ser uma preo­cupação “regional” e específica para ganhar o centro das discussões num país que havia começado a voltar suas costas para a produção agrária, atraindo milhares de camponeses para as cidades industriais mais ricas para, em seguida, jogá-los na miséria que se seguiu a 1929. A perspectiva su­lina ganhava, assim, alcance mais amplo e se transformava em interesse nacional. E era justamente a dignidade do assunto que estava no centro da produção de Faulkner: sua noção de ação épica, das movimentações históricas coletivas e amplas que iam além da visão de uma elite agrária ultrapassada, cifradas em referências bíblicas de alcance “universal”, indicavam que o motor da história parecia estar passando para outras mãos. Tratava-se justamente de buscar outras gramáticas disponíveis, outras perspectivas – desta vez a dos excluídos – que pudessem oferecer um mapa mais completo e mais complexo das novas realidades so­ciais. A importância da ação individual, sedimentada na clareza do enredo que caracterizava a literatura anterior, dava lugar a uma visão a contrapelo da história. A complexidade da técnica buscava, portanto, uma visão da própria complexidade das diversas correntes da história, que haviam sido mascaradas pela “naturalidade” e “simplicidade” da ideologia confiante dos protagonistas da crise.

A crise da política racial

A amplitude do mapeamento da vida social em Faulkner tocava também em assunto espinhoso: as novas políticas raciais e o papel do negro na sociedade que se “modernizava”. A dicotomia en­tre pseudoesclarecimento e bru­talidade, que até hoje caracteriza o comportamento das elites brancas americanas em relação ao negro, havia atingido um de seus inúmeros ápices na seqüência da crise de 1929 e a crescente “gue­tização” dos pobres e dos negros nas periferias dos grandes centros industriais. Entretanto, nenhum dos grandes nomes dessa geração de romancistas se aproximou da questão. Em Hemingway e Fitz­gerald o assunto praticamente não existe. Faulkner, freqüente­mente (e corretamente) acusado de racista no seu tratamento dos negros, pelo menos não se absteve de encarar a discussão.

Já em Enquanto agonizo, a frag­mentação da narrativa em inúmeras perspectivas dava voz a seus personagens brancos: a preocupação é a de adequar a linguagem de cada capítulo à linguagem própria de cada personagem. Não se trata de valorizar e celebrar a diferença, como viriam a fazer as modernas “políticas das identidades”. O fechamento na perspectiva individual dá notícia da dor da fragmentação do círculo familiar, do isolamento insuportável e asfixiante de cada personagem em sua mônada fechada e impenetrável. Tudo isso visto a partir de uma visão ampla: o painel do romance teria o papel de dar a ver que a frag­mentação não é mera contingência, mas tem origem histórica.

Em diversos de seus contos e principalmente no romance O intruso (Intruder in the dust, 1948) o desafio é a utilização da gramática da oralidade da linguagem para dar voz aos personagens negros. Pela primeira vez um negro assume o papel central num romance de Faulkner para representar o “primitivo puro”, distante da cobiça do mundo novo, imune às influências da civilização moderna. O avanço presente na perspectiva racial se combina com uma certa regressão na visão histórica e denuncia uma limitação séria: se a fragmentação implícita no uso da linguagem específica de cada personagem lhe dá dignidade estética, por outro lado, o isola de seus pares e o afasta da possibilidade de ação coletiva real e efetiva, condição para superar a crise a partir de um ponto de vista verdadeiramente revolucionário. 

A crise do mundoda mercadoria

Somente os assuntos discutidos brevemente até aqui – os problemas de uma modernização forçada, os efeitos desastrosos do mercado livre, a fragmentação da linguagem e da vida social, a dor do enclausuramento na identidade individual, a (im)possibilidade de projeto coletivo – já seriam mais do que suficientes para recomendar a (re)leitura da obra de Faul­ kner para o leitor contemporâneo, e principalmente no Brasil, onde sofremos de modo particularmente agudo as conseqüências do discurso da modernização.

Entretanto, a crítica de cultura Susan Willis, em seu espetacular livro Cotidiano – Para começo de conversa (A primer for daily life, 1991), mostrou recentemente que o interesse por Faulkner para a sociedade contemporânea pode ir além. Pois em sua análise da constituição da mercadoria e dos novos hábitos de consumo da sociedade atual, sob a égide da “americanização” cultural e econômica do planeta conhecida co­mo globalização, Willis aponta como o processo se infiltra em diversas manifestações culturais que vão da alta literatura à cultura de massas, da organização política às academias de ginástica e aos supermercados. Um de seus exem­plos mais intrigantes é o romance de Faulkner Enquanto agonizo. Pois a viagem da família do campo para a cidade aponta não apenas para um movimento demográfico, mas também para uma promessa frustrada: o espaço urbano não pode dar à família de agricultores a vida melhor com que eles sonham, pois não pode absorvê-los como produtores, mas, no máximo, e paradoxalmente, como consumidores. O final do romance marca o fim de uma época, e o enterro da mãe, muitas vezes associada no romance à fertilidade da terra, e sua rápida substituição pela nova esposa do pai, apontam para novos rumos. Pois a aceitação dessa última pela família está vinculada a um objeto que traz consigo: um gramofone, envolto por uma aura que a partir de então a família passa a cultuar silenciosamente, em detrimento de qualquer possibilidade de diálogo ou contato humano mais rico. Nesse sentido, o destino do filho mais novo da família, Vardaman, início da nova geração, parece o mais para­digmático. Após o enterro da mãe e a entrada na cidade, onde todos ficam fascinados pelos objetos nas vitrines das lojas, o pequeno menino quer uma explicação para os fatos que se desenrolam (a morte da mãe, a nova esposa). A resposta que recebe é lacônica: “Você não prefere uma banana?”. Não o trem elétrico que queria, mas uma banana. Mesmo destino tem a personagem negra do genial romance de Toni Morrison recém-traduzido no Brasil, O olho mais azul (The bluest eye, 1970): pobre e negra, ela sonha em ter olhos intensamente azuis, como Shirley Temple, ícone do cinema que idolatra. É violentada pelo padrasto e enlouquece. Parece ser também esse o destino da maioria das crianças (e adultos) do Terceiro Mundo, para quem o sonho de consumo já se transformou há tempos em terrível pesadelo. Em tempos de cegueira sistemática e planejada, talvez Faulkner tenha algo a nos ensinar.

Marcos Soares
professor de literaturas inglesa e norte-americana da USP

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