O mistério teatral da feminidade

O mistério teatral da feminidade

FOTOS: Bob Sousa

“Insatisfeita e triste, não te equilibras no mundo,
Mas disfarças tua vocação transcendente
Cuidando com doçura dos arranjos temporais”.

Murilo Mendes. Marta Maria.

Em O testamento de Maria, texto do escritor, jornalista e crítico literário irlandês Colm Tóibím, a principal figura feminina do cristianismo perde sua aura de divinização e ganha o estatuto de uma personagem literária complexa. Exilada na cidade de Éfeso, após a crucificação de seu filho, e mantida sob a proteção – e o controle – de alguns dos discípulos que o acompanhavam, Maria se recorda dos principais eventos que levaram à condenação à morte de Jesus pelos romanos. Suas palavras, vazadas em estilo seco, cortante e cerebral, não dissimulam em momento algum o ceticismo, a desconfiança e a amarga ironia com que ela trata daquela série de acontecimentos, base do Novo Testamento cristão.

O título da peça propõe um intrincado jogo de significação que o espetáculo protagonizado por Denise Weinberg, em cartaz no auditório do Sesc Pinheiros, com direção de Ron Daniels, só faz potencializar. Se a palavra de origem latina “testamento” alude, dentre seus vários significados, a cada uma das duas grandes divisões da Bíblia (a saber, o Antigo Testamento, que trata da velha aliança entre Deus e os homens; e o Novo Testamento, que anuncia a renovação deste compromisso), o texto de Toíbím sugere, fazendo uso do acento de insubordinação típico da literatura irlandesa, que o discurso de Maria se apresente ao espectador como uma espécie de forma estranhada, não tributária de nenhuma das duas metades bíblicas. Trata-se aqui, então, de um terceiro testamento. De viés feminino e, por isso mesmo, herético, uma vez que a esta virgem-mãe destronada não compete dar sustentação a alianças e a fundamentações religiosas de cunho patriarcal. Antes, o que lhe interessa é humanizar os pontos de vista e temporalizar os deuses.

O estilo adotado pelo dramaturgo é o da narração eloquente, realizada em

primeiro plano. Maria relata os episódios de que tomou parte direta ou indiretamente com clareza e objetividade, procurando interligá-los a um todo compreensível e os definindo temporal e espacialmente, de modo que seu discurso se impregne de um teor iluminista. Já que ambas as palavras privam do mesmo étimo, o testamento de Maria acaba se convertendo no testemunho de uma mulher mobilizada pela voz da razão, embora não infensa às mais genuínas emoções, às quais ela se entrega, sobretudo, nos momentos finais do espetáculo, quando lágrimas e hesitações interrompem com comovente comedimento o fluxo narrativo.

O teatro como uma arte profana que paradoxalmente procura transgredir sua origem sagrada conduz aqui o público a uma bem-sucedida experiência crítica. Esta Maria que está diante de nós não surge como a
figura de um rito religioso, verticalizada e enigmática, cujo destino não nos é compreensível porque moldado pelos desígnios de Deus. Tampouco sua verdade nasce da fé ou da tradição devota. Ela exibe a profundidade de uma personagem dramática, que vai externando aos poucos sua rica e complexa interioridade com o intuito de duvidar da doutrina cristã e contestar o domínio exclusivo desta como único mundo verdadeiro.

A música executada ao vivo por Gregory Slivar é um diferencial da encenação. Além de insinuar uma discreta atmosfera mediterrânea e pontuar ritmicamente momentos-chave do discurso de Maria, ela também funciona como contraponto à eloquência dominante, envolvendo a protagonista em silêncios e interditos necessários.

Grande parte do sucesso de um monólogo depende, naturalmente, do trabalho do intérprete. Denise Weinberg, atriz de maturidade artística notável,  que o público paulistano conhece de longa data, coloca à disposição da Maria de Tóibím uma rica paleta de inflexões de voz, de expressões faciais e de nuances de emoção. Que não somente mantém do começo ao fim o interesse do espectador no que está sendo narrado, como também mobiliza nele aquele tipo de encantamento sensorial que, no teatro, objetiva à concretização do material sensível da vida.

A cenografia de Ulisses Cohn, o figurino de Anne Cerruti e a iluminação de Fábio Retti concorrem para garantir uma aura de plasticidade cuja beleza nasce da austeridade e da contenção. Por fim, o trabalho de concepção, adaptação e direção de Ron Daniels não deixa dúvidas: O testamento de Maria é um pequeno ato teatral impregnado de grandeza. Um monólogo proferido com crescente tensão por uma mulher inconformada pelo fato de terem transformado seu filho tão humano em um inconcebível herói da redenção.

O testamento de Maria
Onde: 
Sesc Pinheiros – Auditório (3º andar) – Rua Paes Leme, 195 – Pinheiros
Quando: Até 13 de fevereiro; quintas, sextas e sábados, às 20h30
Quanto: de R$ 25,00 a R$ 7,50
Info: (11) 3095-9400.

 

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