O manifesto anti-humanista

O manifesto anti-humanista

Quarta Marcha das Vadias em São Paulo, em maio de 2014 (Foto: Mídia Ninja)

A carta-manifesto do assassino de Campinas mostra como o senso comum machista encara direitos como ameaça e se identifica com o algoz em vez das vítimas

O ano de 2017 começou com um manifesto patético, violento e trágico. A carta de um assassino/suicida de Campinas que passa das palavras odiosas a morte consumada e demonstra, de forma assustadoramente pedagógica, como os discursos de ódio e o ideário conservador matam. E mesmo que esse tipo de atitude terminal seja uma exceção, o ódio epidêmico e a violência simbólica e discursiva nas redes, a empatia com o assassino é assustadora.

A carta do assassino de Campinas, que matou 12 pessoas da mesma família, a ex-mulher e o filho de 8 anos, é mais do que um manifesto feminicida, de ódio as mulheres em geral, é uma súmula de um novo tipo de “cobrador” e “vingador” que acusa mulheres, minorias, humanistas pelo seu infortúnio pessoal.

O novo “cobrador” sintomaticamente não odeia as elites ou os ricos, nem está engajado em qualquer luta de classes (o que tampouco justifica qualquer crime),  mas, sintomaticamente, direciona seu ódio e sua miséria existencial contra mulheres, presos, defensores dos direitos humanos!

Sintoma de um retrocesso civilizatório global, o matador campineiro odeia todo e qualquer sistema que coloque em xeque sua masculinidade, seu poder pátrio, seu poder de mando e a posse dos corpos de outros (mulher, filho, família) e se apresenta como o que faz a “limpeza”, matando com uma pistola de 9mm e com uma narrativa de ódio mulheres que considera as “vadias”,  as “loucas”,  as “ordinárias” de um “sistema feminista” totalmente demonizado.

Um justiceiro alimentado pelo mesmo tipo de ódio social, machismos, preconceitos, que circulam diariamente nas redes sociais, nas mensagens de Whatsapp das famílias, no clube, no Congresso, entre autointitulados “homens e mulheres de bem”. Impressiona  o tom assertivo, rancoroso e violento do matador, numa escrita com o mesmo nível de dogmas e assertivas, de maniqueísmo, que encontramos nos comentários das redes ou no discurso de parlamentares como Bolsonaros e Felicianos.

A pistola de 9mm que foi apertada por uma decisão discricionária e individual matando 12 pessoas tem um ambiente e um caldo de cultura, um ambiente afetivo e cognitivo, que dá razões e certezas para o “justiçamento”. As cartas deixadas por ele são manifestos carregados de truísmos repetidos a náusea diariamente nos comentários de posts e notícias. Inclusive nos comentários sobre a chacina no Reveilllon que tentam relativizar e entender os motivos do homem macho branco afrontado!

E aqui o que vemos é tão assustador quando a morte consumada, uma identificação de muitos com as “razões” do matador. Uma empatia ao contrário, dos que se colocam no lugar vitimizante do assassino!

Ameaça existencial

Em O cobrador, conto de Rubem Fonseca de 1979,  temos um assassino serial que é um homem pobre que odeia tudo o que a sociedade centrada no consumo lhe deve: “Fico na frente da televisão para aumentar o meu ódio”. O personagem descobre no exercício do ódio um “sentido” para sua vida e sai cobrando, matando e assassinando seus devedores a esmo:

“Está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, boceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo. Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol”

O cobrador de Rubem Fonseca é um vingador que sai matando gente abastada em festas de Réveillon chiques, consultórios de dentistas, mata os ricos e demonstra ódio e raiva das ações e do estilo de vida de uma elite da qual nunca participará.

O assassino/suicida de Campinas, o técnico de laboratório Sidnei Ramis de Araújo, de 46 anos, era um profissional liberal, um homem de classe média, que se sente injustiçado, se sente afrontado porque “as leis são feitas todas para essas vadias e ordinárias que querem os filhos só para elas com despesa paga”.

O matador de Campinas incorporou todo o discurso ressentido contra direitos emergentes, um discurso que vimos se repetir a cada pequena conquista social: cotas para negros nas universidades, politicas de proteção das mulheres, avanços nas questões LGBT, pequenas conquistas na demarcações de terras indígenas, direitos humanos para presos. Todos esses direitos são vistos como “privilégios” e seus portadores ou reivindicadores como inimigos a serem neutralizados, odiados ou, em casos extremos, exterminados.

O assassino de Campinas, na sua carta-manifesto, não se escora em nenhum discurso mirabolante ou delirante, simplesmente professa o senso comum machista, patrimonialista, demonstra sua admiração pela força policial, deixa áudios respeitosos para a polícia,  justifica porte de armas e explosivos e considera que o impeachment tirou “uma vadia do poder”, mais uma mulher que ofende sua existência: a ex-presidenta Dilma Rousseff, ela também alvo de ataques de misoginia em estádios, aparições públicas, comentários nas redes.

Todas as conquistas sociais (sejam direitos das mulheres ou de presidiários) são para o matador de Campinas uma ameaça existencial. Ele vocaliza os que querem restaurar o pátrio poder, a hierarquia, o assujeitamento das minorias, em uma luta violenta para restaurar um masculinismo predatório.

O matador vocaliza o ressentimento infinito dos cobradores que se acham vítimas e “perdedores” na redistribuição dos poderes! Dai a empatia dos que “entendem” suas razões. Odeiam todas as instituições que tentam instaurar relações menos assimétricas e assujeitantes: feminismo, direitos humanos, governos progressistas. Um inconsciente machista e patriarcal explodido e ferido de morte que ataca de forma brutal, para fazer a “limpeza”. Trata-se de um profundo desprezo por tudo que é humanista. Algo preocupante porque constituinte de novos sensos comuns.

Esse estado social de guerra conduz a própria dissolução do social, um dos efeitos do capitalismo neoliberal e da monetização da vida. Daí a crença nos discursos mais fascistizantes e radicais, dos conservadores, da extrema-direita, dos “restauradores”  da velha ordem que prometem um apocalipse, não um dia de cão, mas uma era de fúria. Um discurso em que os muitos se identificam com o algoz e não com as vítimas.

Donald Trump é só a expressão global mais acabada desse pensamento restaurador e de empatia com o algoz. O golpe jurídico midiático no Brasil é outra dessas experiências “vingadoras”e catárticas, projetos de demolição social, gozar com a retirada de direitos, com discursos que justificam a morte real e simbólica do que odiamos, mesmo que para isso se arrastem mais pessoas, grupos, países no processo de demolição. Pregam uma restauração da “ordem” pelo mercado, pela religião, defendem “remédios amargos”, toda uma onda de retrocessos que produz mais crise e impasses, mais violência e intolerância.

O matador de Campinas é, queira-se ou não, de forma consciente ou fluída (mesmo que não se trate obviamente de uma relação de causa e efeito), uma caixa de ressonância desses discursos que querem matar os mundos que emergiram, neutralizar a potência das diferenças para disputar o inconsciente explodido dos auto intitulados “homens de bem”, no seu delírio de onipotência e pulsão de morte.

10 mandamentos dos odiadores

Não faltam contradições nesse discurso de ódio discricionário, feminicida, persecutório, que convoca o que temos de pior, o medo da perda de controle e poder sobre os outros, a empatia com o carrasco e com o algoz. Um anti-humanismo radical e mortal que aparece nos 10 mandamentos do matador de Campinas, nas cartas deixadas que incitam a:

  1. Justificar o discurso de ódio (e mesmo um crime hediondo e odioso) em nome do “seu” senso de justiça.
  2. Vingar “sua” família desfeita com a destruição de várias famílias e em nome de todos os “homens de bem” tidos como vítimas das mulheres.
  3. Difamar, linchar verbalmente, destruir simbolicamente ou tirar a vida de 12 pessoas de forma onipotente e discricionária justificando que ataca, mata e morre “por justiça, dignidade, honra e pelo direito de ser pai”
  4. Difamar, xingar, e matar a ex-mulher e várias mulheres afirmando que não é machista, mas que “mulheres e cachorrinhos de condomínio tem mais direito que nós trabalhadores”
  5. Dividir as mulheres entre as que merecem viver (“essas de boa índole, eu amo de coração”) _ e as que devem morrer (as mulheres sob as quais não se tem mais poder de mando).
  6. Matarbrutalmente o próprio filho de 8 anos jurando amá-lo e para “protegê-lo”.
  7. Culpar o “sistema feminista”, as “ordinárias”, as “loucas” e a “lei vadia da penha” por não ter a guarda do filho e por comportamento considerado inadequado pela justiça.
  8. Fazer justiça com as próprias mãos e se tornar um criminoso por considerar a justiça brasileira e os políticos “todos bandidos”.
  9. Declarar-se “vítima” das mulheres e um “trabalhador honesto” injustiçado pelos direitos humanos que só “defendem bandidos”.
  10. E para terminar e viralizar o ódio: Incitar outros homens a matar mulheres: agora os pais é quem irão se inspirar e acabar com as famílias das vadias”.

Em um mundo em que as mulheres são consideradas posse e propriedade, assim como os filhos e filhas, ser esposa [namorada, amante, ex] não é seguro. Essas tragédias pós “rompimento de relacionamento”, em que as mulheres passam a ser vistas pelos homens como vagabundas, vadias, indignas, provocam ódio e violência porque são também sintomas patéticos e odiosos de um real declínio da cultura dos machos que perdem poder diante dos novos arranjos familiares e da ampliação de direitos dos muitos e das minorias.

E isso, se deve, em parte, as mudança de mentalidade refletidas em políticas públicas, como a Lei Maria da Penha e outras políticas que incentivam a autonomia e aceleram o início do fim da cultura de silenciamento das mulheres. Alguns homens e mulheres ainda não entenderam que essas mudanças não tem volta e, feridos de morte, preferem matar o mundo.

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Novembro

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