O irreal em miniatura

O irreal em miniatura

Fernanda Paola

Na década em que Dany Laferrière nasceu, o ditador François Duvalier – o Papa Doc – assumia o poder no Haiti. E, por causa dele, seu pai teve de sair de Porto Príncipe, a capital, para um exílio na Itália que duraria a vida inteira. Mas Dany Laferrière, 58, sofreu mesmo com as atrocidades do filho de Papa Doc, Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, que assumiria a Presidência em 1971, após a morte do pai.

Ele escrevia no jornal da cidade, Le Nouvelliste, quando seu colega e melhor amigo foi assassinado pelo regime do ditador. Quase ao mesmo tempo, o escritor fugiu para Montreal, no Canadá, resgatado pela organização internacional Juventude Canadá Mundo.

Em País sem Chapéu, primeiro livro dele traduzido no Brasil, o autor narra a volta para a casa, em Porto Príncipe, após 20 anos de ausência. Recebido pela mãe e pela tia – a presença feminina é forte em sua vida –, sensações, gostos e cheiros trazem-lhe o passado de volta. “Foi um livro escrito para apagar a distância entre o Haiti e mim”, diz o autor em entrevista à CULT.

CULT – Seu livro País sem Chapéu é um registro autobiográfico de seu retorno ao Haiti após 20 anos. As sensações, cheiros, conversas, tudo que acontece você registra em forma de diálogo. Quanto do livro é inspirado na natureza e nos costumes da população haitiana?

Dany Laferrière – Quis estar o mais próximo possível dessa natureza. Foi um livro escrito para apagar a distância entre o Haiti e mim. Mas um livro é sempre artificial, o que não quer dizer necessariamente que os ingredientes não sejam naturais. Exatamente como a cozinha, que é a arte mais próxima do romance: você coloca em uma caldeira os elementos mais díspares, que, uma vez misturados, resultam em um gosto particular. Traçar todos os elementos de inspiração haitiana é uma meta impossível, já que tudo está imerso nessa cultura. Ao mesmo tempo, isso não é apenas o Haiti – para mim, o Haiti é o mundo em miniatura.

Você sofreu alguma influência do “realismo mágico”?

Não muito. No entanto, li bastante García Márquez, Jorge Amado (Gabriela, Cravo e Canela é meu livro sul-americano preferido) e, sobretudo, Borges – que é um ser à parte. Pode-se estar interessado em um estilo sem que ele o influencie. País sem Chapéu tem alguns traços de realismo mágico, mas não passa disso. Meus outros livros são mais realistas, mas um realismo atravessado pela poesia.

Gosto de variar o cardápio, ir de obras que são comentários sobre a vida de um jovem exilado nas grandes cidades norte-americanas às crônicas provincianas, que contam minha infância até a reflexão sobre a identidade.

E o que acha da reação contra ele – no “realismo urbano” de autores como o colombiano Mario Mendoza, de Satanás?

Não me interesso pelas escolas. Simplesmente escrevo. Os rótulos servem para assinalar a presença do escritor nessa selva onde existem tantas pessoas que praticam o mesmo ofício. É bom para os universitários que querem pensar e os livreiros que querem vender. O que acontece é que o cliente (leitor) quer saber que tipo de produto ele tem em mãos. Isso elimina o elemento-surpresa que está no coração da literatura.

Para mim, escrever é como sonhar: a gente se instala em um espaço de liberdade onde não há mais fronteiras, agentes de imigração, polícia, Estado, e onde o ser humano se torna inteiramente responsável por suas ações.

Isso vale também para o ato da leitura, que é tentar compreender os mecanismos da sociedade a fim de inserir aí um pouco de sonho. No caso de País sem Chapéu, vejo-me mais perto de Juan Rulfo (1917-?-1986, mexicano) e seu magnífico Pedro Páramo.

Recentemente, morreu Édouard Glissant, importante escritor caribenho nascido na Martinica e cuja obra tem características similares às da sua. Ele te influenciou de alguma maneira?

Eu o conheci, mas ele não me influenciou por uma razão simples: não li sua obra. Discutimos frequentemente. Não recebi influência de nenhum escritor em particular, pois minhas influências são tão numerosas e tão variadas (sou um leitor voraz) que não saberia rastreá-las.

Em “Haiti”, o músico Caetano Veloso canta “reze pelo Haiti. O Haiti é aqui”, referindo-se à pobreza, à corrupção, à desigualdade, ao racismo que existem no Haiti assim como no Brasil. Essa é uma visão demasiadamente maniqueísta do Haiti (do mesmo modo como os estrangeiros veem o próprio Brasil?)?

As pessoas têm o direito de ver os países como bem entenderem. Mas com frequência aquilo que se diz do Haiti não me parece inteiramente exato. Os fatos são verdadeiros (miséria, corrupção etc.), mas isso não é tudo. É preciso também olhar para a dignidade dessas pessoas e os talentos culturais que explodem em todos os campos: pintura, música, escultura, dança e literatura. Caso contrário, elas já seriam pessoas mortas.

Digo frequentemente às pessoas que analisam o Haiti que o conforto (ele de fato é importante) não é o único valor da vida. Há outros.

Você estava no Haiti em 2010, quando um dos piores terremotos da história matou 150 mil pessoas. Afirmou que o terremoto dilacerou um país que já estava de joelhos, mas que significaria, paradoxalmente, uma chance para discussão. O que houve de lá para cá?

Voltei várias vezes depois e visitei algumas cidades que foram bastante atingidas. Não discuto a ajuda internacional e os progressos ou não da reconstrução; a imprensa faz isso melhor. O que me interessa são as pessoas. Eu imaginava que a amplitude dos prejuízos materiais e a perda de vidas humanas iriam atingir o país em seu estômago e mergulhá-lo em um desespero inominável. Mas vi uma sociedade que se reconstruiu rapidamente. A reconstrução não diz respeito apenas ao material… Os prejuízos emocionais e até espirituais também foram enormes.

E, no entanto, as pessoas estavam lá, cheias de vida, entusiasmadas, por vezes mais cheias de vida do que aqueles que vieram ajudá-las. Mas pouco se fala dessa energia, desse modo de reconstrução. Como escritor, jamais vejo uma multidão, mas sempre as pessoas que a compõem. E, para compreender essa multidão, preciso examinar em profundidade a vida de um indivíduo.

Depois de sair de sua cidade, Porto Príncipe, fugido do regime de Baby Doc, você foi parar em Montreal, uma cidade majoritariamente branca e culturalmente diferente daquela com a qual estava acostumado. Como foi seu processo de aculturação?

Fiquei muito contente de deixar o regime de Baby Doc e também de cair em uma cidade calma e francófona como Montreal. Mas, no final das contas, a pergunta é a mesma para todo mundo: você quer fazer parte do grupo ou não? Há um preço a pagar quando nos afastamos do grupo, e esse combate só termina com a morte.

Mesmo quando vivemos no país em que nascemos, existe também esse processo de aculturação. Há 35 anos que vivo aqui e me sinto quebequense, mas nem sempre. O Haiti ainda vive em mim. E os países que não conheço também ocupam um espaço importante em meu imaginário. Esse é o enigma da vida.

País sem Chapéu
Dany Laferrière
Trad.: Heloísa Alves Moreira
240 págs. – R$ 39

(2) Comentários

  1. Fiquei emocionada quando ele disse que o Haiti ainda vive nele.
    Quero o livro.Muito bem apresentado.

  2. Acabei de ler “País sem chapéu”, angustiada por ser a única obra de Laferriére traduzida para português. Estive no Haiti em 2008 e surpreendi-me ao ler de um Haitiano impressões que tive tão intuitivamente ao passar por aquelas ruas onde “não havia dentro” como diria Fernando Pessoa. Fui transportada para as multidões barulhentas e coloridas, com uma dignidade impressionante, resistentes, de alma e corpo, à degradação que traz a pobreza. Espero ansiosamente pelo restante da obra em português.

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