Privado: O Homem Oco, ou a Síndrome da Humanidade

Privado: O Homem Oco, ou a Síndrome da Humanidade
Tenho uma síndrome. Não sei nome, nem origem. Conheço apenas o que sinto. Único sintoma: grande sensibilidade no maior órgão de meu corpo. Incomoda. Arde. Irrita-me o toque. A sensação é semelhante à de queimadura. Mas é tão somente sensibilidade. Sou sensível somente ao contato superficial. O que é profundo não me atinge. Ainda não consegui me casar. Nenhuma mulher entende que choro facilmente. Basta encostar em minha pele, meus olhos se enchem de lágrimas. Se me esfrega, caio em prantos. Dizem que homem não chora; para mim, basta alguém me acariciar. Estou exposto ao descuido dos outros. Sou do avesso: carrego a alma na pele. Minha superficialidade escondo. Na tentativa de desvendar minha patologia frequento hospitais, igrejas e consultórios. Há vinte anos me deito no divã de minha vizinha, Abigail Fontes. A casa dela é minha, espelhada. Onde tenho a biblioteca, Abigail tem um consultório, bastante movimentado, por sinal. Gosto de observar as pessoas quando entram e quando saem. Crio histórias para desvendar a incógnita de cada um: término de relacionamentos, fobias, loucuras. Religiosamente, Abigail entra no carro às sete horas da manhã e volta às dez. Jamais quis invadir sua privacidade; nunca perguntei aonde vai. Nós tentamos manter distância – imagino que seja necessário em meu tratamento. Nas quartas-feiras, quando pontualmente às sete e meia da manhã deixo minhas costas arderem apoiadas no móvel do consultório de Abigail, ela não sai de casa. — Então... Em que está pensando? — Você atende outras pessoas aqui?

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