O híbrido perverso

O híbrido perverso
Militante do PT, Rodrigo Pilha foi preso e torturado após estender faixa contra Bolsonaro durante protesto (Foto: Agência PT)

 

I

A imprensa progressista e a fatia das redes sociais preocupada com direitos humanos e liberdades civis denunciaram recentemente mais um fato político estarrecedor no Brasil: um militante vinculado ao Partido dos Trabalhadores (PT) sofreu tortura física e psicológica por parte de agentes do Estado. Informações e relatos circulantes merecem explicitação sintética.

Em 18 de março passado, quando foi preso, Rodrigo Grassi Cademartori, ou Rodrigo Pilha, como é conhecido, portava faixa de protesto na Praça dos Três Poderes, em Brasília, junto com outros quatro militantes. A manifestação acusava o hóspede do Palácio do Planalto de genocida. Realçando o adjetivo, a faixa estampava a suástica nazista.

Enquanto seus companheiros foram liberados no mesmo dia, Rodrigo Pilha ficou detido, em razão de uma condenação de 2014. No dia seguinte, o militante foi transferido para o Complexo Penitenciário da Papuda, na mesma cidade.

Rendido sob a custódia do Estado, indefeso no Centro de Detenção Provisória (CDP) II, Rodrigo Pilha, sentado ao chão e com as mãos na cabeça, foi espancado por agentes penitenciários, com murros, chutes e pontapés, e humilhado com expressões depreciativas.

Seu “crime”: professar ideologia de esquerda e pertencer a agremiação política que defende trabalhadores.

Consta que o agente agressor, enquanto desferia golpes, evocava o inominável.

25 dias depois, o militante transitou para o regime semiaberto.

Enquanto permaneceu no Complexo Penitenciário da Papuda, Rodrigo Pilha dormiu no chão vários dias.

Ao deixar o Centro de Progressão Penitenciária (CPP), para onde havia sido transferido, atearam-lhe sabão em pó na cabeça, depois água, e tentaram sufocá-lo com um balde.

II

A hediondez dessa violência política, considerada no todo, revela tática tão antiga quanto a história citadina da barbaridade – das dinastias pré-cristãs aos totalitarismos recentes. Um membro de grupo opositor vê-se, no caso, convertido em bode expiatório para servir a, pelo menos, cinco operações de governo: ostentar, com frivolidade, poder de mando sobre supostos súditos; dar lição pública a quem ousar repetir o feito; associar prontuário policial ao nome e à imagem dos opositores; cifrar, com ameaças físicas, a eliminação corporal propriamente dita; e incandescer sangue nos olhos da malta eleitoral odienta.

III

Para além da óbvia investigação comprobatória do episódio – já solicitada sobretudo pelo Conselho Nacional de Justiça (CCJ), pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-DF), pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM) e pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) –, os próprios indícios de crime de Estado não comprometem apenas a imagem e a integridade republicanas do sistema judiciário e carcerário brasileiro, mas também todo o regime democrático previsto na Constituição Federal de 1988.

Esse apontamento ainda é insuficiente. Na verdade, as notícias e relatos testemunham o embrião repressivo, robusto e orgulhoso de uma ditadura clandestina no interior da República.

As características da violência política e institucional em jogo subordinam-se ao perímetro de atuação do Grupo Tortura Nunca Mais e do Subcomitê da Organização das Nações Unidas (ONU) de Prevenção à Tortura.

IV

Voluntária ou involuntariamente, todas as autoridades que, tendo poder para tanto, não impediram a tortura física e psicológica de Rodrigo Pilha no Complexo Penitenciário da Papuda estão implicadas.

Lamentavelmente – nunca é demais lembrar –, o problema tem diâmetro alargado. Ao mesmo tempo que circulam relatos de violência crônica no mesmo local por parte de agentes públicos, o fato traz à tona a realidade carcerária Brasil afora. O estado da arte da questão no país segue excepcionado do cumprimento da Constituição Federal*. Como já houve quem acertadamente o notasse, a organização prisional per se, a superlotação das celas e o rol de procedimentos de violência física e psicológica equivalem a tortura estrutural. Trata-se de um feixe venenoso de fatores infelizmente retroalimentado por padrão de decisões judiciárias às vezes desacompanhadas de imperativo ressocializante.

O Brasil assiste, há séculos, a vigência espargida dessas condições para além do perímetro de estabelecimentos prisionais. O céu aberto da planície urbana e rural testemunha o fio insidioso de brutalidades oficiais sem fim contra tribos indígenas, comunidades negras e mestiças, regiões pobres e periféricas.

Mencione-se apenas a mais recente e escandalosa. No início de maio, a Polícia Civil do Rio de Janeiro, invadiu, com quatro blindados, a favela do Jacarezinho. A operação, que durou quase 10 horas, resultou na chacina de 27 pessoas, a maioria negra. Um policial, atingido na cabeça, faleceu no local. Há relatos de tortura, casas invadidas e poças de sangue em vários lugares. Cenas letais da operação foram adulteradas no mesmo dia: corpos foram alocados nos blindados, antes da chegada da perícia. O governo do Estado do Rio de Janeiro descumpriu determinação suspensiva do Supremo Tribunal Federal (STF) no tocante a investidas oficiais dessa natureza durante a pandemia de Covid-19.

Essa tendência civilizatória tortuosa – incluída, no caso, de Rodrigo Pilha e similares, a violência covarde contra quem se encontra sob custódia de uma instituição de Estado – não somente enxovalha mundialmente o país, como também o coloca como pária do direito internacional e, por esse abismo, do Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade (IDHAD), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

Tal condição, acumulada à de pária pandêmico, passou a fazer tanto mais sentido após junho de 2019, quando o hóspede do Palácio assinou decreto ferindo de morte a eficácia do trabalho do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, instância brasileira prevista no Protocolo Opcional de Convenção Contra Tortura da ONU, com anuência signatária do Brasil.

V

Como era de se esperar, os meios de comunicação tradicionais, dos impressos aos eletrônicos, consideraram, com exceções, a covardia institucional e ideológica contra Rodrigo Pilha como carne sem valor, e a excluíram da devida ênfase.

O mosaico de notícias, testemunhos e episódios, funéreo em tudo, inspira, no entanto, uma depreensão fundamental: fustigando intensamente a suspeita estratégica, ela grita contra o regime político híbrido atualmente instalado no país. Nada tem a ver com eventual despreparo, isolado ou não, de um ou outro agente penitenciário.

Vale lembrar os liames básicos dessa perversidade pretensamente velada, braço institucional-repressivo da guerra cultural em curso, integrante, por sua vez, da guerra híbrida adaptada ao âmbito da “normalidade” civil: nem o chumbo de 1964, nem os ares de 1988, mas um 2016 milicianamente endurecido dois anos depois, em declive na direção do pior.

Enquanto o hóspede do Palácio e militares de alta patente exercem as aparências da legitimidade democrática forjada em 2018, os verdugos do aparato repressivo do Estado, seus apoiadores e seguidores, realizam o jogo sujo da ditadura que gostariam de restaurar, com protocolos violentos que lembram os dos porões do DOI-CODI.

A Brasília formalmente democrática dá lastro e cobertura a práticas autoritárias espalhadas, em órgãos protegidos pela invisibilidade mediática conservadora e medrada, contra não somente detidos indefesos, mas também cidadãos considerados “mal vindos” ou suspeitos a priori. Toda e qualquer hostilidade de gênero cabe, com larga folga, nessa sombra plutocrática de ressonância silente, autorregulada sistemicamente pela indiferença diuturna.

Que a democracia formal no Brasil seja quase perfeita no papel pós-1988 e, ao mesmo tempo, um arremedo de devaneio na realidade crua, sempre repousou acima de qualquer dúvida. Essa dicotomia evidente, mesmo quando higienizada com sebos inconfessos, marca e nutre todos os espectros da política convencional. Que essa ambiguidade venha galvanizando e somando, progressivamente, com pulsões de porão liberadas em vários setores de Estado e segmentos sociais, uma violência física mais ostensiva, de feições periclitantes, não sinaliza senão a consolidação oficiosa da hibridação política mencionada.

Esse porão, escudado, encorajado e promovido por faces e trejeitos postiços, caçoa da legislação que protege a liberdade de pensamento, expressão e manifestação, ao ferir à faca e escopeta o Artigo 5 da Constituição Federal e o Artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A rude galhofa dessa escumalha política e obscura joga no aterro sanitário nortes civilizatórios de República, especialmente o respeito à diferença.

Tão óbvia quanto universal, a matéria justifica carregar em tintas éticas contra todos os retrocessos. Momices e patuscadas de extrema direita, ao terem efeito mediático-diversionista no conjunto dos segmentos sociais, douram o desaparecimento do horror no estrato da percepção comum. Aparências oficiais assim, amarelo-risonhas em vitrines de massa e digitais, caudatárias de uma “normalidade” inexistente no Brasil real (para evocar Machado de Assis e Ariano Suassuna), referendam, além da zombaria pressuposta, seculares loas à história da mentira e do ludibrio.

Rodrigo Pilha com Lula, em dezembro de 2019 (Foto: Ricardo Stuckert)

VI

Para evocar Jean Baudrillard, saudoso pensador francês, trata-se de um regime de simulação sarcástica da democracia formal para, de dentro dela, liberar práticas de violação dos corpos e mentes de representantes do contradito, alinhados a valores distintos dos desorganizadamente professados pelos lambe-botas, agentes voluntários e simpatizantes do gendarme-mor do Palácio.

A bem da verdade, esse híbrido perverso, em forma de regime político unificado no fingimento, foi inaugurado com o golpe de 2016, que depôs a presidenta Dilma Rousseff, e se confirmou com a cassação política do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Desterrado judicialmente do processo eleitoral em 2018, para cumprir 580 dias de ostracismo carcerário, Lula foi o primeiro preso político desse tipo de regime híbrido, sob armação e álibis hoje internacionalmente escandalosos para a tradição do Estado Democrático de Direito.

Lula não deixou de ser também preso de consciência, em razão de suas convicções políticas e de sua visão de mundo. A violência gratuita de que foi vítima principia por esse critério fundamental: o da vertente de pensamento, a verve de expressão que o difunde e a capacidade de catalisação convincente de diferenças.

À sombra de interesses norte-americanos ligados ao domínio petroleiro intercontinental, Lula foi sumariamente retirado de circulação em função de uma alucinação paranoica típica – a do “comunismo imaginário” –, temerosa do impacto triunfante do carisma articulatório do ex-presidente no contexto da disputa presidencial. Suas posições de centro-esquerda, ainda que próximas de uma comportada social-democracia popular, e suas alianças internacionais desafiam a hegemonia dos Estados Unidos na América Latina e no perímetro ocidental.

VII

O regime híbrido mencionado é o outro nome para o modus operandi do neofascismo, doravante norteado por princípios neoliberais em matéria macroeconômica. A reedição pretensamente cristã do populismo fascista no Brasil serpenteia traiçoeiramente por dentro da escultura da República, mina pari passu as paredes do Estado de Direito, tira proveito permanente do modelo cosmético de democracia e, no que tange não somente ao aparato policial, multiplica práticas autoritárias escoradas em hipocrisia literal [do étimo grego hupó, sob, embaixo, posição inferior, e krisis, referente a momento difícil, de mudança]. Empreende a cavalaria como se nada houvesse de escabroso ou a ser revertido acima e abaixo das superfícies percebidas – tudo às expensas da ressonância multimediática conivente.

Esse regime político híbrido, tão plutocrático quanto segregacionista, tão supostamente tolerante quanto costumeiramente violento em perímetros sob ostracismo noticioso, segue progressão conforme plano originário, no rústico caudal da bolsonarização dos quartéis, clubes militares e casernas.

As mutações de feição desse regime são ainda desconhecidas, e suas consequências, imprevisíveis. A consistente ruptura com as placas tectônicas que o sustentam, dada igualmente no horizonte, é, por hora, improvável. Pelo andor do descalabro e salvo melhor juízo, o ímpeto político multilateral do neofascismo – nas ruas e redes, nos parlamentos e meios de comunicação etc. – desdobra-se, infelizmente, para além de eleições majoritárias.

Evidentemente, asserções pragmáticas e prospecções desiludidas nunca dispensam a dialética. A prudência estratégica não cochila na agenda da desconfiança legítima e progressista. Acolhe, por isso, proposições em outros termos: a tal mistura informal de regimes pode ser tanto o sintoma de uma transição institucional para algo mais sinistro, na ribanceira incivil, quanto – como krisis, espera-se – um horizonte frutiferamente liberador em prol da reconstrução democrática do país; e, nessa projeção, cifra, desde já, fissuras de reversibilidade.

Constitui percepção comum no campo internacional da defesa dos direitos humanos e das liberdades individuais o fato de que o bolsonarismo no aparelho de Estado representa descomunal regressão histórica – de muitas décadas, incontáveis –, em todos os sentidos. Esse tempo terá de ser inteiramente recuperado, com ganhos de avanço republicano, não importa quanto tempo dure o descalabro. A minoração estrutural do dano começa com o insulamento, a neutralização e o destronamento da rede genocida o mais rápido possível. De modo simultâneo, será crucial fortalecer democraticamente freios e contrapesos institucionais, políticos e educacionais, sob lastro em unificação programática de todas as forças progressistas, visando impedir o retorno do neofascismo ao poder executivo e à maioria parlamentar no Congresso Nacional.

*Os rigores inconstitucionais da situação foram estabelecidos em 2015, no pronunciamento do STF na ADPF 347 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental).

Eugênio Trivinho é professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).


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