O gângster do sertão

O gângster do sertão

Marcos Flamínio Peres

Mito que inspirou a música, a literatura e o cinema nacionais, o rei do cangaço é tema da biografia Lampião – Violência e Esperteza, escrita pela socióloga Isabel Lustosa.

De caráter marcadamente didático, a obra, prevista para chegar às livrarias em 12 de agosto, enfatiza a narrativa da história por meio do resgate das imagens de época, que vão desde a convivência em meio ao bando a detalhes das indumentárias usadas e fotos e reportagens em jornais.

Doutora em ciência política pelo Iuperj e pesquisadora da Casa de Rui Barbosa, no Rio, a autora explica, na entrevista a seguir, como o cangaço se apoiou na conivência das elites locais e no descaso do Estado.

CULT – Como Lampião se insere na tradição dos foras da lei a que se refere Eric Hobsbawm? Há algum aspecto em sua trajetória que o aproxime do resgate “social” promovido por Robin Hood ou do “político” de um subcomandante Marcos?

Isabel Lustosa – Não me identifico muito com a tese de Hobsbawm. Aliás, ela é muito bem analisada e criticada pelo principal autor com que trabalhei para escrever este livrinho: Billy Jaynes Chandler.

Lampião não era de maneira nenhuma um Robin Hood, pois jamais roubou dos ricos para dar aos pobres, a muitos dos quais roubou, torturou e matou com requintes de crueldade.

Sua motivação sempre foi pessoal e, desde a juventude, com os irmãos, se metera em várias brigas na vizinhança, fazendo seus primeiros inimigos entre essas pessoas às quais continuaria a perseguir pela vida afora.

Lampião marcou ao mesmo tempo o apogeu e o declínio do banditismo no cangaço. Por quê?

Por causa da situação de abandono do sertão nordestino, onde quem fazia as leis e as executava eram os grandes proprietários de terra. Com esses, Lampião se compunha sempre que possível, trocando proteção ou mesmo a promessa de que não atacaria por dinheiro e munição.

Preferia atacar pequenas cidades e fazendas sem muitos recursos de defesa. Como essa era a circunstância de quase todas, ele sempre teve onde agir. As autoridades estaduais, ocupadas em defender e desenvolver as cidades litorâneas, só se mobilizavam para dar combate ao cangaço quando acontecia algo de espetacular.

A falta de unidade entre as polícias dos vários estados do Nordeste foi um facilitador da ação do cangaço. A tranquilidade de que Lampião gozou até quase o final da década de 1920, no interior do Ceará, pode ser atribuída a certa leniência do governo estadual. Tal como sua ligação com as elites sergipanas, que, na década seguinte, também lhe seria muito útil.

Pode-se citar uma série de circunstâncias para a razão de seu sucesso: falta de recursos dos governos, egoísmo de alguns latifundiários, incompetência das autoridades policiais e, naturalmente, a grande capacidade tática e estratégica de Lampião para lidar com esses fatos e com a natureza do sertão.

A gradual incorporação da mulher ao dia a dia do bando modificou seu modo de atuação e também sua intensidade? Isso representou algum aspecto de vanguarda para os padrões de comportamento da época – um débil “feminismo” avant la lettre?

A entrada das mulheres no bando só se deu na segunda fase da vida de Lampião, quando ele já estava na Bahia e encontrou Maria Bonita. Ele também estava mais velho e mais manhoso na forma de lidar com sua clientela. Já desenvolvera um modus operandi similar ao dos mafiosos de Chicago, vendia proteção contra si mesmo, digamos assim.

Mas as mulheres do cangaço raramente participavam das batalhas – sabiam atirar e tinham armas, mas ficavam na retaguarda. Não creio que se possa fazer uma analogia entre essas mulheres, algumas delas raptadas, com qualquer imagem feminista. O ambiente era totalmente machista, e as que não andassem na linha poderiam ser executadas.

Maria Bonita tinha certa influência sobre Lampião e conseguiu algumas vezes impedir execuções. Mas, apesar de seus protestos, assistiu a Virgulino castrar um rapaz apenas por diversão. Creio que Maria Bonita nada tinha de guerreira, dedicando-se à costura, aos bordados, aos cuidados com seus cachorros e dando, isso sim, um toque de feminilidade ao ambiente árido dos acampamentos.

Qual foi o papel da imprensa na compreensão do fenômeno do banditismo de Lampião?

Lampião adorava saber que era notícia no Rio e em São Paulo e pedia que lhe trouxessem jornais e revistas em que seu nome aparecesse. Nesse sentido, a imprensa sensacionalista, tal como faz ainda hoje com alguns bandidos, contribuiu para fixar a imagem de Lampião, repercutindo seus crimes, batalhas e fugas mais impressionantes.

Ela, juntamente com a literatura de cordel, ajudou a criar e a difundir toda a mítica que cercaria a imagem do cangaceiro.

Qual o impacto de sua figura sobre as artes, como o cordel, a literatura e o cinema? Ele era poeta?

Consta que teria sido Lampião o criador da música-tema do cangaço, “Mulher Rendeira”. Ele e outros cangaceiros eram repentistas e, nas comemorações, se entregavam a esse jogo de versos provocativos que se chama desafio. Muitos dos episódios de sua trajetória foram primeiro narrados pela literatura de cordel, que tinha então grande força entre o povo do interior do Nordeste.

Ainda em vida, Lampião foi tema de livros e do famoso filme de Benjamin Batista que nunca chegou a ser apresentado, pois foi proibido pelo Estado Novo.

No entanto, tal como a saga de Canudos, as histórias do cangaço seriam elemento inspirador do cinema novo. Em especial porque, entre os anos 1950 e 1960, a repercussão que alcançaram os movimentos sociais no campo pela reforma agrária – as Ligas Camponesas – estimulava na classe média intelectualizada e de esquerda a fabricação de uma mística.

Essa mística esteve presente tanto no cinema, cujo exemplo mais significativo foi Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, mas também no teatro do CPC, ligado à UNE, e na MPB, com “Carcará” e “Viramundo”, por exemplo.

De que modo a imagem pode ajudar a romper mitos e lugares-comuns da história?

No caso específico de Lampião, as imagens mais chocantes são, na verdade aquelas em que ele e seu bando são as vítimas. As cabeças cortadas dos cangaceiros, que durante décadas figuraram em exposições, são a imagem mais forte que restou da violência do cangaço.

Ao lado delas, o que existe são coisas que revelam o lado mais humano e criativo dessas pessoas que cometeram crimes tão bárbaros: as cenas de Maria Bonita costurando ou vestida como uma moça da cidade junto com seus cães; dos cangaceiros dançando e simulando de forma canhestra uma ação; e os instantes de intimidade entre Lampião e Maria Bonita são comoventes. Talvez porque nos digam que a beleza e a poesia podem florescer até em meio à maior barbárie.

Lampião – Violência e Esperteza
Isabel Lustosa
Ed. Claro Enigma
120 págs.
R$ 23

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