O Filho

O Filho

Quando o menino nasceu, vi uma sombra escura apagar o brilho que entrava pela janela, parecia sombra de árvore, mas veio com um vento gelado em pleno verão, como se invertessem o dia, vi um filme quando mocinha, o dia em que a terra parava, era a mesma sensação, mas o menino cresceu, diferente do pai, não quis ficar na ferragem, preferia tocar violão, só que tocava mal o coitadinho, arrebentava as cordas que davam em cheio no rosto, eu sempre o achei muito magro, a arrebentação sangrava a testa, coisa feia de ver o coitadinho assim ferido, se ferindo, cansado como um passarinho que escapou das dentadas de um cachorro bravo, cada dia mais magrinho como se perseguido pela morte, não de morte, que ninguém se incomodava com ele, mesmo adolescente nunca atrapalhou os vizinhos, parecia um vagido de fome, nunca tomou coisa alguma, um suco, um leite com chocolate, nada que fizesse bem nem mal, eu fazia feijão, ele não comia, macarrão, ele nem tocava, era magrinho como uma pena e a cada dia que passava parecia lhe sumir um dos lados, até que um dia acordei mais cedo ouvindo um grunhido de corvo, cria cuervos, dizia meu pai quando era vivo e morava aqui conosco sempre sentado na soleira da porta esperando passar a Graciema, a vizinha da saia curta, a única alegria do velho, eu nunca me importei, nem ela, era um moça que entendia a miséria da vida, mas meu pai ficava ali e iam sumindo aqueles lados do menino, até a nossa memória ia apagando pelo costume de não ver, um dia ficou só o fiapo do papel visto de lado e se eu quisesse falar com ele tinha que esperar um assobio ajudado pelo vento que entrava pela janela, porque a boca gastava todo o sopro pra emitir uns cicios vagarosos quando ele precisava de alguém, fosse eu, fosse outro  que o mudasse de lado, com o tempo fui colando o lado que ainda aparecia na parede com cola branca, antialérgica que era pra ver se durava, a Graciema passou por aqui e sugeriu um spray que fixava grafite, mas eu achei um exagero de caro e não precisava disso de fixar os traços, era mais uma questão de cor, mas fixador de cor a Graciema disse que não existia, e o pai dele na ferragem disse que nunca comprou uma coisa destas, devia ter em outro tipo de loja, de material para artistas, não coisa de peão de obra, que ali não haveria de ter nada que iludisse ninguém, só coisas úteis, nada de bobagens, nada destas esquisitices, nem corda de violão, só corda séria, corda de verdade, não adiantava insistir, eu não insisti, que eu não sou besta, deixei o garoto colado na parede até que veio uma chuva quando a janela estava aberta e o coitado molhou tanto que não adiantava mais querer salvar, embrulhei bem dobradinho, depois de secar ao sol, ficou enrugado, desapareceu o sorriso num trejeito de esgar, parecia que gritava atônito, a Graciema sugeriu que eu passasse a ferro para voltar à forma original, mas eu que conheço estas coisas sei que nunca voltaria, forrei uma caixinha com papel pardo, perfumei um pouco pra ajudar a não dar cheiro, e guardei no armário em um lugar bem silencioso que é pra eu esquecer, de vez em quando abro a porta devagar,  toco na caixinha pra saber a temperatura, uma vez abri e vi que continua lá, mas se alguém pergunta onde está meu filho, eu só digo que foi estudar longe.

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