O fascismo e a língua

O fascismo e a língua
Roland Barthes em seu escritório, nos anos 1970 (Foto: Julian Guindeau, L'Express)

 

O que sobrou da política em Barthes? Essa pergunta poderia parecer estranha para o autor de Mitologias. Nesse livro, publicado originalmente em 1957, o autor analisou os diversos discursos que encontrava no seu cotidiano: consultou revistas, jornais, reportagens televisivas para mostrar como, em cada um deles, um tipo específico de poder operava disfarçadamente na sociedade burguesa de sua época. Esses discursos podiam irritá-lo, podiam até, por vezes, encantá-lo (de maneira estranhamente crítica, isto é, a partir de uma distância fundamental), mas dificilmente o deixavam indiferente: a política era, para ele, uma questão visceral. A sua análise era tão mais pertinente quanto o seu objeto era insuspeito. Uma propaganda de sabão em pó, um guia turístico, uma coluna de astrologia no jornal: em todos esses casos, escutava-se sempre uma mesma voz, que tentava fazer com que todos andemos na linha. Transbordar essa linha era perder o solo, abdicar de seu próprio bom senso, excluir-se do convívio social, aproximar-se da loucura e ser, fatalmente, acusado de impostura.

Contudo, se é possível, hoje, interrogar-se sobre a presença e a efetividade da política barthesiana, é porque esse aspecto tem sido apagado pela crítica do autor. Claro, os comentadores dificilmente poderiam ignorar o impacto do marxismo nos primeiros textos de Barthes. Mas esse impacto foi esvaziado: ao invés de perguntar-se sobre sua pertinência, a crítica francesa busca explicá-lo a partir do contexto, ainda dominado por Sartre e pelos intelectuais engajados, como se tudo não passasse de uma moda. Talvez não seja preciso lembrar cada uma das etapas desse apagamento. Por ora, vamos nos concentrar no seu momento mais revelador. Em 1978, em sua aula inaugural para o Collège de France, Barthes afirmou: “a língua, como performance de toda a linguagem, não é nem reacionária, nem progressista: ela é, simplesmente: fascista; o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”.

Muitos dos estudiosos de Barthes chegaram à conclusão que essa passagem era produto de uma impostura barthesiana. O fascismo da língua seria uma noção propriamente absurda, um erro de um professor desconfortável com a sua posição. Tentando marcar seu lugar, sentindo que não pertencia àquela prestigiosa instituição, Barthes teria exagerado, procurando participar dos debates políticos desastradamente; como se nada, em seus trabalhos anteriores, o tivesse preparado para isso. Talvez, mais interessante do que responder ponto a ponto a essas críticas, seria mais útil perguntar-nos por que até mesmo alguns de seus melhores leitores foram incapazes de compreender a ideia de fascismo da língua.

Parece-nos que é só porque o discurso fascista cresce, hoje, em todas as rachaduras da vida social, é só porque assistimos, perplexos, ao modo blasé com que se lida com esse tipo de linguagem que podemos compreender o fascismo da língua. É fácil constatar, mais uma vez, o que já havia sido percebido por todos os observadores desse tipo de movimento: o fascismo é uma fala banalizada. Ela o é duplamente, na verdade: banalizada pela sua ubiquidade e pela cegueira que suscita. Isso porque, por um lado, ela é uma potencialidade permanente em nossas sociedades capitalistas: está, em germe, nas piadas, nos comentários, nos pequenos sorrisos que endereçamos a quem nos é inferior. Daí a necessidade, muitas vezes observada, de líderes palhaços, capazes de esconder a sua violência sob as aparências do humor. Por outro, ela é trivializada até o momento de sua explosão: contra o fascismo, sempre chegamos tarde demais, ele sempre nos deixa estupefatos. Assim, só o percebemos quando bate no nosso pescoço: apenas quem não conviveu com sua normalização pode se dar ao luxo de acreditar que “fascismo” é uma palavra que pode ser empregada como qualquer outra. É por isso que esse termo nunca foi propriamente pensado pelos barthesianos: ele precisava que seu sentido fosse evacuado, tratado como uma “quase loucura”; importava, antes de tudo, que se mantivesse trivial pois, de outro modo, ele adquiriria um rosto por demais ameaçador. Mas Barthes entendeu bem o que a palavra significava: é preciso, então, arrancá-la de sua banalidade, mostrar claramente a ferocidade que a funda. Ora, só é possível fazê-lo a partir de uma recusa da língua da qual ele se apossa, rejeitando tudo o que nela é passível de ser naturalizado.

Para entender o sentido da passagem em questão, é preciso, então, esclarecer dois pontos: por um lado, quais são as particularidades do discurso fascista e, por outro, em que sentido a língua pode ser fascista. Talvez a melhor maneira seja ver esse discurso em ação. Para testemunhá-lo, nem é preciso uma pesquisa muito extensa: basta estar um pouco atento à fala política cotidiana. Ao tentar negar a existência de povos indígenas e ciganos no território brasileiro, Abraham Weintraub tinha apenas uma opção: dizer que há apenas um povo, o brasileiro, e que todos os seus integrantes devem descrever-se exclusivamente dessa forma. Na frase “o índio é brasileiro” (que ele não pronunciou, mas que está pressuposta em sua fala, assim como “o cigano é brasileiro”) um termo absorve agressivamente o outro, negando toda e qualquer particularidade que pudesse defini-lo de maneira diversa.

Tal raciocínio só é possível a partir de uma queda do discurso na língua. O discurso fascista tem a particularidade de recusar aquilo que o constitui como tal. Para que a língua possa ser mobilizada, ela precisa ser flexível o suficiente para permitir a pluralidade. Mas na frase que acabamos de escutar, Weintraub quer negar essa possibilidade: o verbo “ser” não deve ultrapassar seu caráter gramatical. O “ser” fascista não é mais do que a identificação do sujeito ao predicado. Ele é tautológico: os dois termos da frase, “índio” e “brasileiro”, devem ser idênticos porque o verbo assim o garante. Trata-se, então, de assegurar-se que não se diga nada além da estrutura considerada na forma mais simples, como se a fala fascista pudesse apresentar-se como uma voz mais essencial do que qualquer outra. Daí a naturalização da frase, e a sua consequente banalização: a predicação primitiva, vista como fundamento evidente de todo pensamento, é investida de um afeto violento que é propriamente fascista. Não se procura limitar a fala por fora, mas fazer a língua recuar por dentro: ela é contraída até assumir a sua forma mais elementar, até o ponto em que ela não poderá dizer nada além da própria predicação. Como vimos, o fascismo não é aquilo que cala, mas que obriga a dizer: impô-lo é forçar os sujeitos a viver a sua própria língua como um maquinário pesado, condenando-os a repetir a razão fascista até quando eles procuram contestá-la.

O crítico e professor Roland Barthes no College de France, em 1977 (Reprodução)
O crítico e professor Roland Barthes no College de France, em 1977 (Reprodução)

Assim, se buscássemos responder à fala de Weintraub com um discurso mais ou menos racional, seríamos prontamente identificados como opositores do governo e, consequentemente, inimigos do Brasil. De acordo com os argumentos apresentados e com sujeito que os formula (ou até independentemente disso), seríamos acusados de petralhas, corruptos, gayzistas ou vitimistas. Todas essas palavras significam, evidentemente, a mesma coisa: o seu sentido importa menos do que a sentença que as fundamenta. Em “ele é comunista”, é essencial que se escute menos a palavra “comunista” do que o verbo “é”: poderíamos trocar o predicativo por qualquer outro sem que nada de relevante mudasse. Importa, antes de tudo, enquadrar-nos em um estereótipo. Tanto melhor, então, se respondermos na mesma moeda: ao empregar a predicação primitiva, levaremos a briga para um terreno onde a derrota será certa.

É nesse sentido que podemos falar em fascismo da língua. Não porque, evidentemente, a língua seria essencialmente fascista (não é de “essência” que se trata); mas porque ela obriga um determinado tipo de relação com o seu funcionamento. A aceitação passiva de seu burburinho fundamental (a “ressonância terrível” de que fala Barthes recrudesce as pulsões de classificação e de identificação, que, na sua forma brutal, estão na origem do afeto fascista. De maneira oposta, a utilização dos recursos da língua para que ela possa dizer outra coisa, para que signifique mais, para que possa gerar outros contornos, outras vozes, enfim, outros modos de pensar, esse constante trapacear com a língua, esse “esplendor de uma revolução permanente da linguagem”, tudo isso é o instrumento por excelência da subversão política; é o que Barthes chamará, simplesmente, de “literatura”.

O que é, então, “literatura” para Barthes? Devemos abster-nos de fornecer um contraexemplo. Se o fizéssemos, estaríamos operando por contraste: ao opor um discurso ao outro, delimitaríamos duas essências; irmãs inimigas que, por confrontar-se, devem ser tratadas como equivalentes. Nesse caso, não estaríamos lutando contra o fascismo, mas recusando a possibilidade mesma da luta: ao brigar contra alguns de seus aspectos, cedemos no fundamental, esquecendo, assim, de propor uma outra forma de viver na língua. Se algo como uma literatura, tal qual ela foi sonhada por Barthes, puder ser definida, não será a partir de características delimitáveis em um espaço próprio, mas como um horizonte. A literatura de Barthes não é uma classificação, mas um convite: ela é aquilo que nos faz refletir, a cada vez que tomamos a palavra, sobre que tipo de afeto estamos fazendo circular, que modos de acolhimento nossa fala quer promover e que formas de solidariedade podem ser construída hoje.

Paulo Procopio Ferraz é doutor pela Universidade Paris 8. Desenvolve pós doutorado em literatura francesa pela USP sobre Roland Barthes, com apoio da FAPESP. Estuda crítica literária do século 20 e as maneiras pelas quais um texto crítico pode constituir-se como escritura, para além de seu papel de compreensão de uma obra literária


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