O estrangeiro

O estrangeiro

Ronaldo Vainfas

Vive-se hoje, no Brasil, um tempo de busca das africanidades. As editoras brasileiras têm lançado livros sobre a história e a literatura africanas. As universidades públicas incluíram disciplinas obrigatórias sobre a história da África. O MEC exige, em seus editais, que os livros didáticos incluam capítulos exclusivos de história do continente, quer no ensino fundamental, quer no ensino médio.

Enfim, a controvertida política de cotas e o não menos polêmico apoio governamental às comunidades remanescentes dos quilombos não deixam dúvidas de que a África e as africanidades estão na ordem do dia.

Mas de que África se trata? Para os apoiantes dos atuais “quilombolas” ou das políticas afirmativas do Estado brasileiro em relação aos afrodescendentes, a África em causa é a “África negra”, o continente flagelado pelo Ocidente através do multissecular tráfico atlântico, da escravidão e do colonialismo imperialista.

No entanto, o paradoxo da questão reside em que, quanto mais se conhece a história da África, mais se torna evidente que a “Mãe África” é um mito. Há várias Áfricas, diversas africanidades, tão disparatadas entre si como seriam, por exemplo, as culturas ibérica e escandinava, na Europa.

Ódios tribais

Para os conhecedores da obra do historiador Alberto da Costa e Silva – A Enxada e a Lança ou A Manilha e o Libambo, entre outros –, o livro de V. S. Naipaul, A Máscara da África, não haverá de causar espanto, quando mostra países totalmente distintos e, mais que isso, países com sociedades que se estranham mutuamente, no mesmo território, quando não se odeiam, movidas pela lembrança de ódios tribais.

O famoso genocídio dos tutsis pelos hutus em Ruanda (1994), tema de vários filmes, dá prova significativa de como a ideia de uma “África negra” é uma construção ocidental, ininteligível para a maioria dos povos africanos.

O conceito de “negritude” formulado pelos intelectuais negros nos anos 1960, a exemplo do martiniquenho Aimé Césaire e do senegalês Léopold Senghor, cumpriu importante papel no processo de descolonização (sem contar o caso à parte da África do Sul), mas não foi muito além disso.

V. S. Naipaul é escritor renomado. Natural de Trinidad, é britânico pela formação intelectual e indiano por origem. Autor de vasta obra de ficção e não ficção, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2001.

A Máscara da África é um livro que reúne impressões de viagens realizadas pelo autor a diversos países do continente. Uma tentativa de misturar reportagem com história e uma pitada de antropologia. O leitor familiariza-se, através de páginas impecavelmente escritas, com alguns meandros socioculturais de Uganda, Gana, Nigéria, Costa do Marfim e África do Sul.

Naipaul parte, em cada caso, de situações prosaicas: as histórias sobre a “Vista de Kasubi” que abrigava (e a Unesco reconheceu) a sepultura de dois soberanos da velha Uganda, a de cultura buganda; os ritos e “oráculos” de um babalaô de Lagos, que jogava búzios, mas interrompia a cerimônia para atender o celular; uma preocupante visita do autor à terra dos gas, em Gana, afamada por apegar-se ferrenhamente às suas tradições ancestrais.

Naipaul parte dessas histórias para falar da história de cada país visitado e descrever os ritos e crenças que vivenciou como estrangeiro. Não por acaso, o livro traz por subtítulo “vislumbres das crenças africanas”. Vislumbres – nada mais que isso.

O bom do livro, além da leitura saborosa, é o passeio que o autor proporciona ao leitor ao conduzi-lo às encruzilhadas culturais de vários países africanos. O leitor sairá convencido de que a ideia da “mãe África” não faz qualquer sentido.

Mas há algo que incomoda: o tremendo estranhamento que o autor revela, aqui, ali, alhures e algures, com os costumes que descreve. É perfeitamene possível que o leitor de Máscara da África experimente algum sentimento de rejeição e celebre, consigo mesmo, o fato de nunca ter estado em algum daqueles lugares.

Isso porque Naipaul não se esforça minimamente em explicar os costumes que descreve, por tê-los visto, ou as lendas que expõe, por tê-las ouvido.

Naipaul somente narra e descreve. E longe está de fazer qualquer espécie de “descrição densa”, à moda de Clifford Geertz. Trata-se de mera descrição, com muito embalo e graça narrativa, sem excluir, porém, juízos de valor.

Antiorientalismo

Digo “sem excluir juízos de valor” porque, no mais das vezes, os tais juízos entranham-se na narrativa, na maneira de descrever isto ou aquilo – sem chegar a externar o estranhamento de um autor estrangeiro diante dos babalôs de Lagos ou das lendas bugandas.

Condenação explícita somente se pode perceber na rejeição dos fundamentalismos islâmicos que também viscejam em partes da África.

É possível compreender, assim, as críticas que alguns intelectuais de esquerda moveram contra Naipaul, considerando-o um divulgador de estereótipos acerca dos costumes africanos e um propagandista da cultura ocidental em contexto neocolonial.

É o caso do palestino Edward Said, escritor palestino celebrizado pelo livro Orientalismo (1978). Mas Said também exagera, por razões ideológicas, sua crítica a Naipaul, sobretudo pela fama que o escritor granjeou no mundo intelectual. O próprio Naipaul sempre disse, por sua vez, que nunca deu a menor bola para a política.

No frigir dos ovos, o autor de A Máscara da África, como “historiador”, dá conta do recado para o leitor menos exigente; como “antropólogo”, é sofrível, embora ofereça relatos fascinantes sobre as várias Áfricas; como escritor, enfim, é magnífico. Esse é, afinal, o ofício de Naipaul.

Ronaldo Vainfas é professor titular de história moderna na Universidade Federal Fluminense

A Máscara da África
V. S. Naipul
Trad.: Marcos Bagno
Companhia das Letras
288 págs
R$ 49,50

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A África é tema de outros dois lançamentos. O também romance A Flecha de Deus (Companhia das Letras), do nigeriano Chinua Achebe (1930), um dos mais respeitados escritores do continente, conta a história de um sacerdote dividido entre a tradição de seu povo e a influência do colonizador inglês. Já em Candongueiro (Record) – expressão usada para designar as vãs em Angola –, o jornalista brasileiro João Fellet narra suas viagens pelo leste da África, do Egito à África do Sul.

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