O espectro de 1964
Em entrevista ao jornalista Kennedy Alencar, em fevereiro passado, o presidente Lula fez um comentário a respeito das possíveis comemorações dos 60 anos do golpe de 31 de março de 1964. Para o presidente – à época do levante, um jovem metalúrgico de 17 anos –, não havia por que “remoer” o passado. Era necessário “saber tocar a história para frente”. Dias depois, o presidente orientaria seus ministros a evitar a promoção de eventos que mirassem a história do golpe.
A afirmação causou reações de grupos e entidades ligados aos direitos humanos e à preservação da memória. A Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia, que representa mais de 150 associações, divulgou carta em que afirmou que “falar sobre 1964 é falar sobre os projetos autoritários e elitistas da sociedade que continuam ameaçando a possibilidade de o Brasil se afirmar como um país soberano”.
Sem citar o presidente, a Associação Nacional de História (Anpuh) disse em nota que “uma postura política que fala em esquecimento, conciliação e ressentimento em nome do futuro procura calar vozes e banalizar as violações dos direitos humanos”. O texto trazia uma pergunta no título: como esquecer 1964?
A entrevista com o presidente foi exibida dias depois de investigação da Polícia Federal (PF) revelar a existência de uma “minuta de golpe” para contestar o resultado das eleições presidenciais de 2022 e instaurar um estado de sítio, com o objetivo de impedir a posse de Lula. Em versões do documento produzidas por assessores do entorno do Palácio do Planalto, previam-se a prisão de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e a realização de novas eleições. Segundo a investigação, o então presidente Jair Bolsonaro, derrotado no pleito, se encontrou com chefes das Forças Armadas buscando viabilizar o apoio militar para a investida golpista.
Seis décadas depois do golpe de Estado que destituiu o presidente constitucional João Goulart e instaurou uma ditadura de 21 anos, o espectro da sublevação militar rondou novamente os círculos do poder no Brasil. Ainda parafraseando Marx, o peso das gerações mortas oprimiu como um pesadelo o cérebro dos vivos.
Antes da revelação do plano de golpe, o pesadelo tivera sua primeira aparição pública no dia 8 de janeiro de 2023, quando uma ação coordenada de grupos extremistas promoveu o que investigações apontaram como uma tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito. A invasão do Congresso Nacional e do STF, na tarde daquele domingo, expuseram as vísceras de um movimento que contou com o beneplácito de setores militares e evocou – feito a história que se repete como farsa, ainda na fraseologia de Marx – a retórica do assalto golpista de 1964.
1964: reminiscências
Esquecer o 31 de março não está na pauta das Forças Armadas. Na sua cúpula, o legado de 1964 continua a ser tratado como página de um passado honroso e como lição para o futuro. Segundo o jornal O Globo, em mensagem obtida pela PF na investigação Tempus Veritatis, o general e ex-ministro interino da Secretaria-Geral, Mário Fernandes, exortou por uma ação presidencial contra o resultado das eleições e escreveu: “Nossas Forças Armadas são de Estado, e como tal, com base em sua história e servidões, jamais poderão intervir em qualquer processo no País, sem uma base de apelo social e de amparo legal que justifique tal ato. Assim, contamos com um Evento Disparador, como no passado!”.
O hiato de 60 anos entre o golpe de Estado bem-sucedido e o malfadado plano de 2022 aponta, no entanto, mais distâncias que aproximações entre os dois períodos, como analisa Daniel Aarão Reis, professor de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF).
A polarização da Guerra Fria e a experiência da revolução cubana formaram o ambiente externo propício ao sucesso das intervenções militares – no Brasil e no resto da América Latina –, alimentadas pelo fantasma do comunismo e sustentadas pelo Departamento de Estado americano. No plano interno, houve intensa da mobilização da sociedade civil, marcadas pelo ruído das Marchas da Família com Deus pela Liberdade, apoiadas por lideranças civis como Magalhães Pinto, Carlos Lacerda e Adhemar de Barros. No outro flanco, as esquerdas radicalizavam as demandas pelas reformas de base, representando possibilidades de alterações profundas na sociedade brasileira. “Em 1963 e 1964, eram reais as ameaças constituídas por movimentos pelas reformas de base. Caso vitoriosos, iriam efetivamente transformar as bases da sociedade brasileira. Nada de semelhante havia no Brasil de 2022 e 2023”, comenta Reis.
Nem condições externas nem internas favoreceram uma reedição de levante militar no pós-2022. Os Estados Unidos se apressaram em reconhecer a legitimidade do resultado eleitoral. Sem apoios públicos expressivos, os acampamentos bolsonaristas em frente aos quartéis renderam mais memes para as redes sociais que uma efetiva mobilização popular. Na cúpula das Forças Armadas, um racha impediu uma ação conjunta de tomada do Estado. Por seu lado, as esquerdas não representaram alternativas concretas de transformação de base, como no início da década de 1960, quando os ecos de revolução vinham de Cuba, Argélia e Vietnã.
Para o professor Carlos Fico, do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), todos os golpes e ensaios de golpe são parecidos: tentativas de deposição do presidente da República por meio de ações bélicas, quase sempre por parte das Forças Armadas. Ele lembra que, desde a Proclamação da República, em 1889, o país passou por 13 tentativas de golpe militar, seis delas bem-sucedidas. “Há um problema histórico e estrutural de intervencionismo militar que marca a fragilidade institucional da democracia brasileira: os militares brasileiros sempre interpretaram (e continuam interpretando) a incumbência constitucional de garantir os poderes constitucionais como licença para tutelar a sociedade”, afirma Fico, que hoje pesquisa padrões recorrentes de golpes para um novo livro, Utopia autoritária brasileira.
Para o professor, o que há de mais significativo hoje sobre o golpe de 1964 e a ditadura militar é a divulgação de versões benevolentes ou laudatórias pela direita e extrema-direita. “Sempre houve isso, mas, de alguns anos para cá, elas se organizaram e assumiram orgulhosamente esse tipo de pauta – o que era feito envergonhadamente no passado”, diz.
Em Menos Marx, Mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil (Todavia, 2021), Camila Rocha analisou a formação dessa nova direita, que perdeu o pejo de louvar o legado autoritário da ditadura militar. Com o fim do regime, em 1985, e a promulgação da nova Constituição, em 1988, uma espécie de pacto democrático passou a reger a sociedade brasileira. A própria redação do famigerado artigo 142 da Carta Constitucional (requerido por golpistas como justificativa para intervenção das Forças Armadas) esvaziava o poder militar ao subordiná-lo à autoridade civil.
Dizer-se de direita tornou-se algo vexatório, tal como afirmar-se partidário da ditadura. O revival da retórica pró-1964 encontrou no então deputado Jair Bolsonaro seu alicerce. A ascensão bolsonarista, sobretudo a partir de 2013, no início do ocaso do governo Dilma Rousseff, não apenas desfez o pudor pela celebração da história do golpe militar: a extrema-direita retomou os clamores por uma intervenção armada na esteira da derrota de Jair Bolsonaro em 2022.
O insucesso da ameaça golpista, contudo, não afasta a necessidade de vigilância – e, por extensão, da memória como sua mestra. Reis lembra a metáfora usada por Tancredo Neves no contexto da transição para a democracia – “não olhar para o retrovisor” – como um indicativo de que a sociedade brasileira assumia uma postura de conciliação com o passado recente, ainda sob os escombros das perseguições, mortes, torturas e desaparecimentos provocados pela repressão.
“Depois de uma outra ditadura, a do Estado Novo, em 1945, a grande maioria da sociedade brasileira observou este tipo de conselho, não dedicando tempo e energia para pensar a ditadura que vinha de se encerrar. Os resultados não foram nada animadores. A reiteração da mesma atitude nos anos 1980 também não deu bons resultados, comprovando-se, ainda uma vez, que a reiteração do erro não pode gerar acertos”, afirma Reis.
Fico diz ser compreensível (e lamentável) que o governo Lula não tenha força política para enfrentar o problema estrutural do intervencionismo militar. A escolha de um perfil moderado e conciliador para o Ministério da Defesa, comandado por José Múcio Monteiro, seria reflexo dessa fraqueza. “A nomeação dos comandantes militares escolhidos por Lula ainda no governo Bolsonaro foi uma concessão talvez desnecessária e desrespeitou o presidente eleito”, diz Fico. “Mas a orientação para que os ministérios não promovessem eventos assinalando os 60 anos do golpe de 1964 foi obscurantista, do mesmo modo que a fala sobre ‘não remoer o passado’ – equivalente ao lugar-comum de ‘pôr uma pedra sobre o passado’ – foi também obscurantista.”