O difícil processo de paz na Colômbia

O difícil processo de paz na Colômbia

Em tempos de seriados como “Narcos”, dirigido por José Padilha e com Wagner Moura interpretando Pablo Escobar, as complexas relações entre guerrilhas, forças paramilitares e Estado colombianos, a despeito de algumas imprecisões, tornaram-se um dos assuntos preferidos nas rodas de conversas e nas redes sociais no Brasil.

A história política das violências entre grupos da sociedade civil e entre estes e o Estado, na Colômbia, remonta a períodos muito anteriores na formação desse país.

No entanto, durante o século XX, os conflitos políticos se entrelaçaram, de maneira bastante singular e estreita, com interesses econômicos associados ao narcotráfico.

Por essa razão, é impossível fazer, aqui, uma reconstituição desse processo. Nosso foco será apresentar os avanços e bloqueios à construção da paz atualmente em curso.

Completaram-se três anos das negociações de paz entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e o governo do país, que conta com a intermediação da Noruega e de Cuba.

O objetivo das negociações é bastante ambicioso. Trata-se de colocar um termo final a um dos mais antigos conflitos armados existentes no mundo, que já se arrasta por mais de meio século.

Manifestação na cidade de Cáli, na Colômbia.

“Basta ya”: diálogo em meio à confrontação

Ainda que os impactos das violências não possam ser reduzidos a números, impressionam as cifras compiladas no informe BASTA YA: Memorias de guerra y dignidad (2012), elaborado por uma equipe de pesquisadores do organismo oficial Centro Nacional de Memória Histórica. Em 54 anos de conflito, houve 220.000 pessoas assassinadas, 25.007 desaparecidas, 5.712.506 desalojados, 16.340 assassinatos seletivos, 1.982 massacres, 27.023 sequestrados, 1.754 vítimas de violência sexual e 6.421 casos de recrutamento forçado.

Vale lembrar que essa não é a primeira vez que governo e grupos de guerrilha sentam-se juntos em uma mesa de diálogos. Com efeito, tentativas anteriores de pacificação foram empreendidas, mas com pouco ou nenhum êxito, destacando-se os “Acordos de Cessar Fogo e Trégua” ou “Acordos de La Uribe” (1984), os “Diálogos de paz de Caracas e Tlaxcala” (1992) e os “Diálogos de Caguan” (2002).

A diferença, agora, é que de fato nota-se uma confluência de interesses para chegar a um acordo final, com disposição de ambos os lados para concretizar essa tarefa. O governo está cada vez mais certo de que a neutralização e a desarticulação progressivas da guerrilha, junto com o seu isolamento internacional, acabam apontando para uma derrota estratégica desta. Isso indica que as condições políticas estão maduras para um pacto que não implique concessões extremadas e impensáveis por parte do governo.

Mas o processo não se desenrola tão pacificamente, constituindo muitas vezes um diálogo em meio à confrontação direta. Durante esses três anos, as negociações já foram suspensas quando as guerrilhas sequestraram um general do Exército, por exemplo. Houve também o assassinato de 11 militares pelas guerrilhas. Por sua vez, o governo chegou a bombardear e matar 26 guerrilheiros das FARC.

Uma agenda para a paz

Cinco são os pontos principais que pautam a agenda política da transição para a paz, conforme pactuado, em 26 de agosto de 2012, no “Acordo Geral para o Término do Conflito e a Construção de uma Paz Estável e Duradoura”, que deu origem às negociações em curso: (i) política de desenvolvimento agrário integral; (ii) aumento da participação política e ampliação dos mecanismos de democracia direta; (iii) fim do conflito armado, com cessar fogo e deposição das armas; (iv) solução do problema das drogas ilícitas e (v) implementação de políticas de reparação para as vítimas.

Até o momento, avançou-se parcialmente em todas as frentes, ainda que com algumas idas e vindas. Como já era previsto, a tarefa de encerrar um conflito tão complexo, criado em um contexto de Guerra Fria e que reforçou uma violência estrutural persistente na história do país, não é tarefa simples.

De um lado do conflito, estão as guerrilhas surgidas sob inspiração de táticas armadas com o objetivo de uma revolução socialista; de outro, está um Estado que, muitas vezes, associou-se a grupos paramilitares, com relações privilegiadas com políticos e empresários, disputando o controle do território e, em especial, do lucrativo mercado de produção e de circulação do narcotráfico.

Justiça de transição “sem transição”

Essas características singularizam o processo colombiano de “justiça de transição sem transição” em relação aos demais países do Cone Sul. O padrão de violências e de conflitos é bastante distinto daquele experimentado durante as ditaduras civis-militares nos países vizinhos. Não há, na Colômbia, uma transição já consumada – por mais frágil e limitada que seja – para uma democracia formalmente estabilizada e com um mínimo de respeito a direitos fundamentais de seus cidadãos. A fratura social instaurada com o aprofundamento do conflito armado impôs uma persistente fragilidade institucional que dificulta, de parte a parte, a própria negociação.

Um ponto crítico diz respeito à definição da figura de “vítimas” e quem deverá responder a processos penais com possibilidade de cumprir pena em prisões. Uma “Comisión para el Esclarecimiento de la Verdad, la Convivencia y la No Repetición” deverá ser constituída conforme os entendimentos, mas definir medidas de justiça neste contexto ainda é um desafio, inclusive em relação aos padrões do direito internacional dos direitos humanos.

O desafio que está posto na Colômbia pode ser ilustrado pela metáfora de tirar a água que não para de entrar em um barco com ele ainda em movimento. Em termos mais concretos, como dar conta de conciliar imperativos éticos e jurídicos de realização da justiça em relação às violações de direitos humanos cometidas por décadas com um esquecimento ou perdão seletivos que permitam a pacificação e o fim dos conflitos que atravessaram quase três gerações inteiras de colombianos? Como desmobilizar e desarmar os grupos paramilitares, desconstituindo seu poder de influência nas instituições democráticas? É possível recuperar a confiança cívica dos cidadãos nas instituições e nas regras do Estado de Direito em todo o território nacional depois de tanto tempo de governo compartilhado com guerrilhas e paramilitares? De que forma se pode reparar as violências praticadas contra populações inteiras, sobretudo nas zonas rurais, impondo desalojamentos e migrações que mudaram significativamente a demografia?

Não se trata de um desafio fácil e todas essas questões apresentam desdobramentos e variáveis intermináveis. O presidente Juan Manuel Santos tem pressa, pois a paz foi uma aposta marcante de seu governo e precisa colher resultados factíveis que possam ser exibidos como conquista de sua política de diálogo, contrariando seu antecessor, o ex-presidente Álvaro Uribe, entusiasta das investidas militares e para quem não se deveria negociar com esses atores políticos.

Por sua vez, as FARC adiam a solução final da questão. Não desejam entregar, tão facilmente, o trunfo da paz. Além disso, apresentam uma pauta ampla de reivindicações, que não dizem respeito apenas ao perdão ou anistia dos crimes cometidos pelos guerrilheiros, mas também a uma agenda política de transformação profunda da sociedade colombiana no sentido de maior participação política e mais justiça social.

Durante esse ano de diálogos ininterruptos, ainda que com cessar-fogo provisório e permanência de confrontos armados, começou-se a trilhar um caminho importante para a paz. O governo precisa passar mensagens claras para superar o ceticismo difundido na sociedade quanto ao êxito da negociação e para garantir que haverá uma abertura da política institucional para os novos atores constituídos a partir dos conflitos.

Por fim, é preciso neutralizar a oposição da extrema direita que defende soluções repressivas e militaristas, compreendendo a dimensão social das guerrilhas em um dos países mais assolados pela pobreza e pela desigualdade no mundo. O maior equívoco que se pode cometer nas negociações é reduzi-las a meros projetos militares com associação ao narcotráfico.

Este é apenas o começo. Após a celebração do almejado acordo de paz, sua implantação implicará diversas outras dificuldades e desafios para a sociedade colombiana. Resta torcer para que, ainda neste ano, concluam-se com êxito as negociações em curso.

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