O crítico e o poeta Baudelaire

O crítico e o poeta Baudelaire

Poeta-crítico da modernidade, as reflexões estéticas de Baudelaire abrangeram a música, a literatura e as artes plásticas

A partir […] do primeiro concerto, fui possuído pelo desejo de penetrar mais a fundo na compreensão dessas obras singulares. […]. Minha volúpia tinha sido tão forte e tão horrível que eu não podia me abster de querer retornar a ela incessantemente. No que eu havia experimentado, entrava, sem dúvida, muito do que Weber e Beethoven já me haviam feito conhecer, mas também algo de novo que eu me achava incapaz de definir, e essa incapacidade causava-me uma cólera e uma curiosidade associadas a uma rara delícia.

Resolvi me informar do porquê e transformar minha volúpia em conhecimento […]. 1?

Essa passagem de seu ensaio sobre Richard Wagner ilustra bem o que seja para o poeta-crítico Charles Baudelaire uma experiência estética. Alguma coisa acontece ao sujeito (“fui possuído”, “havia experimentado”) que desafia sua capacidade de entendimento, algo de que as redes de interpretação de que dispõe no momento (“Weber e Beethoven”, neste ca­so) não lhe permitem dar conta e que é por isso vivido como “volú­pia”, despertando o “desejo”: “eu não podia me abster de querer retornar a ela incessantemente”. Diante do desejo, uma decisão: “transformar minha volúpia em co­nhecimento”. A escrita crítica, tal como a concebe o poeta, não é outra coisa senão o testemunho de uma experiência desse tipo, de um lado, e, de outro, aquilo que ela im­plica em termos da reflexão sobre a arte e sobre seus efeitos na compreensão do presente.

Com efeito, ao afirmar, em “O pintor da vida moderna”, que “o prazer que obtemos com a representação do presente se deve não apenas à beleza de que ele pode estar revestido, mas também à sua qualidade essencial de presente”,2? Baudelaire opõe o antigo ao moderno não em termos de uma diferença qualitativa no valor da obra, mas pela afirmação do presente. Assim, o fato de que a obra de ar­te moderna anula qualquer relação com o passado não implica ne­cessariamente a recusa do passado co­mo tal, como muitos quiseram entender. O poeta-crítico celebra, aliás, as obras do passado justamente por sua maneira própria de representar seu tempo, e uma das definições que propõe da modernidade a toma não como uma época específica, mas como um modo de relação do artista de qualquer tempo com seu presente: “Houve uma modernidade para cada pintor antigo”,3? escreve ele neste mesmo ensaio.

Assim, a reflexão crítica sobre uma obra de arte, antes de significar, como para os românticos alemães, a transcendência dessa obra, seu “conteúdo de verdade”,4? significa, ao contrário, para Baudelai­re, sua própria dissociação, seu total descomprometimento em relação a qualquer referência à idéia de algo que a preceda a priori e que ela viria, a posteriori, corroborar. Para o crítico, não há nada para além da aparência sensível das coisas – de sua presença –, e é a partir dela e somente dela que a beleza, por meio dos artifícios da imaginação, se configura, como o atestam por exemplo seu elogio à moda e à maquiagem em “O pintor da vida moderna” ou, para citar também o poeta das Flores do mal, estes versos de “O amor à mentira”:

Eu sei que há olhos cheios
[de melancolia,
Que nada escondem por
[debaixo de seus véus;
Belos escrínios, mas sem
[jóias de valia,
Mais fundos e vazios do
[que vós, ó Céus!

Mas basta seres esta
[dádiva aparente
Para alegrar quem vive
[apenas da incerteza.
Que me importa se és tola
[ou se és indiferente?
Máscara, ornato, salve!
Amo a tua beleza!5?

Nesse sentido, Baudelaire incorpora definitivamente ao domínio da arte a dimensão da expe­ riência sensível do artista, fazendo dela a fonte por excelência de sua produção, em detrimento das prescrições que chegam através da transmissão das tradições do passado. No entanto, ao contrário de um Rousseau ou de um Victor Hu­go – para citar os mais célebres pre­cursores da modernidade na França –, que também renegam a tradição como valor absoluto, mas que se esforçam por abstrair, cada um a seu modo, o mundo sensível das contingências atuais em proveito de uma idéia que o transcenderia, Baudelaire concebe tal experiência como uma interação física com a materialidade do mundo ou, para utilizar uma imagem do próprio poeta, como uma “descida” no “espetáculo da vida”. É o que ele diz em sua reflexão sobre Théodore de Banville, endereçando-se a seu leitor e definindo o poeta lírico:

Mas enfim, direis, por mais lírico que seja o poeta, poderá ele jamais descer das regiões etéreas, jamais sentir a corrente da vida ambiente, jamais ver o espetáculo da vida, o grotesco perpétuo da besta humana, a nauseabunda tolice da mulher etc.?… Mas sim, ao contrário! O poeta sabe descer na vida; mas creiam que se ele consente em fazê-lo, não é sem objetivo, ele saberá tirar proveito de sua viagem. Da feiúra e da asneira ele fará nascer um novo gênero de encantos.6?

Entretanto, como observou Wal­ter Benjamin, esse presente, em que se prepara o futuro, encontra-se numa relação indissolúvel com o passado, uma vez que coabita com suas ruínas.7? A reflexão crítica de Baudelaire sobre as águas-fortes de Charles Meryon, produzidas em meio às grandes obras de reurbanização de Paris empreendidas por Haussmann a partir dos anos 1850, dá bem a dimensão dessa interpenetração entre passado, presente e futuro:

Raramente vi representada com mais poesia a solenidade natural de uma cidade imensa. As majestades de pedra edificada, os campanários indicando o céu, os obeliscos da indústria vomitando para o fir­ma­mento seus blocos de fumaça, os pro­digiosos andaimes dos monumentos em reparação, revestindo o corpo sólido da arquitetura com sua própria arquitetura vazada de uma beleza tão paradoxal, o céu tumultuoso, carregado de cólera e rancor, a profundidade das perspectivas aumentada pelo pensamento de todos os dramas que nela estão contidos; nenhum dos elementos complexos que compõem o doloroso e glorioso cenário da civilização fora esquecido.8?

Tornada forma, essa cidade-sujeito em mutação materializa a impureza de tudo o que há, em sua irremissível vocação para a metamorfose, encarnando a paradoxal consciência moderna da infinita espessura do instante, e constituindo o que Baudelaire chamou de “memória do presente”9?. Nesse sentido, talvez pudéssemos dizer, a propósito da dimensão eterna do transitório proposta pelo crítico em sua definição do belo,10? que o eterno reside justamente na transitoriedade. Pois se não há nada além do transitório, do efêmero, o que é eterno é a metamorfose, e toda forma estética que persevera como tal não é outra coisa senão um resto, um dejeto de luxo desse processo. Como o eco tenaz daqueles versos do poeta à passante apenas entrevista e já desaparecida na multidão, versos que celebram um amor que não cessa de não se consumar: “[…] de ti já me fui, de mim tu já fugiste,/ Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!”11?.

Marcelo Jacques de Moraes
professor de Literatura Francesa na UFRJ e pesquisador do CNPq

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Notas

(1) Charles Baudelaire. Richard Wagner e “Tannhäuser” em Paris. Edição bilíngüe. Tradução de Plínio Augusto Coelho e Heitor Ferreira da Costa. São Paulo: Imaginário/ Edusp, 1990: 43-45.
(2) Charles Baudelaire. “O pintor da vida moderna”. Em: A modernidade de Baudelaire. Tradução de Suely Cassal. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988: 160.
(3) Charles Baudelaire. “O pintor da vida moderna”. Op. cit.: 174.
(4) Cf. BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão. Tradução de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 1999: 118-119.
(5) Charles Baudelaire. As Flores do mal. Edição bilíngüe. Tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 361.
(6) Charles Baudelaire. “Réflexions sur quelques-uns de mes contemporains”. Em: Oeuvres complètes. Paris: Seuil, 1968: 483. Tradução do autor.
(7) Cf. BENJAMIN, Walter. “Paris do Segundo Império”. Em: Obras escolhidas III. Tradução de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1989: 80-87.
(8) Charles Baudelaire. “Salão de 1859”. Em: A modernidade de Baudelaire. Op. cit.: 136. A reprodução: Charles Meryon. La Tour de l’Horloge. Água-forte. Museu Carnavalet, Paris.
(9) Charles Baudelaire. “O pintor da vida moderna”. Op. cit.: 176.
(10) Charles Baudelaire. “O pintor da vida moderna”. Op. cit.: 174.

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