O consequencialismo e a morte de Bolsonaro
(Foto: Adriano Machado)
Esta semana, uma coluna de menos de 300 palavras do jornalista Hélio Schwartsman, na Folha de S.Paulo, mexeu ainda mais com os já inquietos ânimos políticos brasileiros. Schwartsman, além de jornalista, tem formação e convicções filosóficas, com uma explícita e bem argumentada posição liberal e uma filosofia moral consequencialista.
A coluna tinha o chamativo título de “Por que torço para que Bolsonaro morra” e, como Schwartsman não é um polemista nem influenciador digital, e escreve sobre questões conceituais para além das conjunturas políticas, provavelmente passaria desapercebida pelas pessoas que só consomem a informação política de alto teor polêmico. Se não fosse o título. Mas o título está lá, assim como as primeiras sentenças, deliberadamente provocativas. “Jair Bolsonaro está com Covid-19. Torço para que o quadro se agrave e ele morra. Nada pessoal”. Desconfio, inclusive, que muitos bolsonaristas não passaram da leitura do título, mas os que chegaram ao primeiro parágrafo, desistiram ali mesmo.
Tivessem continuado a leitura, teriam notado a fundamentação do argumento que vem em seguida. Schwartsman, como sabem os seus leitores, trocou a moral religiosa e as éticas deontológicas (isto é, que adotam combinados normativos sobre como as coisas devem ser e tem que ser para serem moralmente corretas) pelo consequencialismo como filosofia moral. Ora, o consequencialismo em ética é uma perspectiva segundo a qual o único critério normativo para se dizer se um comportamento é apropriado ou não são as consequências que ele comporta.
É bastante simples. Em uma perspectiva religiosa cristã, por exemplo, a divindade já estabeleceu os comportamentos certos e os errados, o que é o bem e o mal, e tudo o que cabe ao sujeito é seguir os mandamentos sobre o que pode ser feito, buscar o bem e evitar o mal. Numa ética de virtudes, por outro lado, a divindade não tem papel algum na avaliação moral da ação. Acredita-se em valores objetivos, universais e racionais (que podem ser alcançados pelo exame racional) e se crê que a ação humana é considerada justa ou injusta, certa ou errada, à luz de tais valores, que, portanto, são vinculantes para todas as consciências. Para um consequencialista, por sua vez, uma ação não é errada ou justa nem por se conformar aos mandamentos divinos nem por obedecer a algum princípio baseado em valores essenciais e absolutos, mas em função exclusiva dos resultados decorrentes dela.
A questão é que dado os quadros de valores dos vários modelos de teoria moral, ao consequencialismo não repugna a ideia de sacrificar sentimentos, valores e até a vida de um indivíduo, desde que isso permita que se alcance um bem superior por este meio. Este fato é explicitamente enunciado por Schwartsman: “O sacrifício de um indivíduo pode ser válido, se dele advier um bem maior”.
O que adviria de útil à sociedade com a morte de Bolsonaro? Sem Bolsonaro, diz Hélio, estaríamos melhor durante a pandemia, sem sabotagem das medidas de mitigação da doença e sem um negacionismo que induz muitos a arriscarem a própria vida. Sem Bolsonaro seriam reduzidas as tensões institucionais e desapareciam as consequências terríveis das suas políticas para o meio ambiente, a cultura e a ciência. Por fim, Bolsonaro não seria mais um exemplo para governantes malucos e irresponsáveis mundo a fora.
Notem que o colunista disse apenas que torce para que Bolsonaro morra. Não sugeriu que alguém o matasse, não disse que vai matá-lo. A malta bolsonarista, contudo, não se conteve e lhe acusou de crime. Ainda ontem se examinava, na cúpula do governo, a plausibilidade de enquadrar o jornalista, vejam só, na Lei de Segurança Nacional. Resta combinar com o STF se consta na Constituição o crime de desejo de morte do presidente, até para combinar quantas dezenas de milhões de brasileiros, nos dias que correm, deveriam ser indiciados pela prática do delito.
Pessoalmente, não sou do partido consequencialista. No dia em que aprovar moralmente a morte de alguém, passarei, coerentemente, a aceitar a pena de morte como um direito do Estado. Afinal de contas, se acho que alguém deve morrer porque a humanidade se beneficiaria com isso, por exemplo, não vejo razão para não aceitar que pessoas devessem morrer por crimes hediondos, excessivamente cruéis, contra inocentes, etc. No meu universo moral, não estou pronto para isso: tiranicídio continua a ser homicídio, desejar a morte de um ser humano horrível continua sendo desejar a morte, não há vida singular que deva ser sacrificada em nome de um bem maior coletivo.
Mas o curioso é que, diferentemente da maioria de nós, o bolsonarismo tem sido consequencialista na pandemia. Quando Sérgio Camargo, homem forte do bolsonarismo na Fundação Palmares, disse que “a maior imbecilidade da história da humanidade” consistiu em confinar “99% da população em casa para vencer um vírus que mata em torno de 1% dos infectados”, estava dizendo, de forma consequencialista, que 1% podia tranquilamente ser sacrificado em nome do bem maior coletivo, que consistia em salvar a economia. Quando Junior Durski, o bolsonarista dono da Madero, disse que o “Brasil não pode parar por 5 ou 7 mil mortes”, estava dizendo que 7 mil vidas era um sacrifício adequado para salvar os seus negócios durante a pandemia. Quando Eduardo Bolsonaro aceitou sem hesitar a possibilidade de as suas avós virem a falecer sem o isolamento social dos jovens, estava placidamente aceitando que o sacrífico dos velhinhos era aceitável em nome de um bem maior. Em todos os casos, adotou-se o consequencialismo.
Como é, então, que quando o sacrifício considerado plausível e cabível para melhorar a existência de todo mundo é a vida do próprio Jair Bolsonaro o consequencialismo virou não só repugnante como também criminoso? Quer dizer que nossos pais e avós podem morrer, sim, por que é para um bem maior, mas Bolsonaro não pode ser a vida dada em sacrifício para o benefício de todos? Consequencialismo com a nossa vida é um estorvo, com a dos outros, contudo, é refresco. Rá!
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)