Philip Roth e os tempos sombrios do século 21
O escritor Philip Roth (1933-2018), autor de 'Complô contra a América' (Foto: Divulgação)
Os acontecimentos políticos dos últimos anos têm gerado um interesse bastante acentuado pela ficção distópica. Segundo o The New York Times, 1984, de George Orwell, se tornou um best-seller em 2016, logo depois da eleição de Donald Trump. Também Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, voltou a ser muito lido, bem como o Conto da Aia, de Margareth Atwood, cujo sucesso renovado levou a Hulu a produzir uma série baseada no livro (o que por sua vez realimentou o interesse pelo livro). Em 2017 foi publicado pela primeira vez no Brasil Nós, de Ievguêni Zamiátin, tido como a primeira grande obra distópica da literatura do século 20. Ano passado, saiu ainda uma nova edição de Arquipélago Gulag, de Aleksandr Soljenítsyn, livro que não é ficção e nem trata de um futuro possível — e sim de um passado bem real —, mas cuja publicação se insere, me parece, nesta preocupação recente com os rumos políticos do mundo, rumos que parecem conduzir para novas ditaduras.
Com exceção do Arquipélago Gulag, todos esses livros retratam um futuro catastrófico, caracterizado por sociedades autoritárias, ou mesmo totalitárias, e mostram as agruras pelas quais passam as pessoas sob regimes centralizados, controladores, preocupados com todos os aspectos da vida, com o que as pessoas pensam, comem, leem etc. Nesses livros, o leitor encontra essas sociedades já consolidadas ou em vias de consolidação, e o interesse por eles decorre, evidentemente, da suspeita de que nosso presente político seja uma etapa na construção de uma sociedade comparável às retratadas nesses livros.
Este interesse é inteiramente justificável e a suspeita tem muita razão de ser, mas há um outro livro, muito pouco lembrado, creio, que é bem mais recente e tem um interesse particular quando comparado a esses. Refiro-me a Complô contra a América, que Philip Roth publicou em 2004, em plena era Bush.
A vantagem essencial deste livro sobre os outros, me parece, está no fato de que nele não há um governo autoritário. Não há um Grande Irmão, nem Gilead, tampouco bombeiros que queimam livros sob ordens do Estado. Aqui o Estado não é totalitário, sequer especialmente autoritário. Mais do que isso; do ponto de vista estrito do controle do Estado sobre as pessoas, o livro tem até mesmo um final feliz. Mas a ausência de um governo autoritário, ou seja, a situação em que “as instituições estão funcionando” também pode dilacerar a vida de certos grupos, famílias ou indivíduos. Publicado pouco depois do 11 de setembro, Complô contra a América mostra as agruras que um governo pode infligir sobre as pessoas sem precisar se converter em uma ditadura, sem precisar de tanques na rua, fechamento do congresso, absorção do judiciário etc.
Em Complô contra a América, Roth imagina uma situação em que um presidente simpático ao nazismo chega à presidência dos EUA. Misturando história real e ficção, Roth fabula a história dos EUA durante II Guerra Mundial se um certo Charles Lindbergh tivesse vencido as eleições de 1940 contra Roosevelt. Lindbergh existiu, mas nunca chegou a se candidatar. Foi um aviador talentoso — famoso pela façanha de voar de Nova Iorque a Paris sozinho em um monomotor —, teve simpatias pelo governo nazista — Göring lhe deu uma condecoração enviada por ordens diretas do Führer — e reclamava do excesso de judeus nos EUA. Sua esposa era escritora e publicou, em 1940, The wave of the future, livro considerado “a bíblia de todos os nazistas americanos”. Serviu à Força Aérea do Exército como coronel e se tornou conhecido defensor da não intervenção americana na guerra, dando palestras para milhares de pessoas como membro do Comitê América em Primeiro Lugar (organização que seria desfeita depois de Pearl Harbor).
Para escrever esta grande obra de história alternativa, Roth se pergunta: e se Lindbergh fosse eleito presidente em 1940? Para respondê-la, o autor imaginou esse outsider literalmente caindo do céu espetacularmente para arrebatar a população e ser eleito com folgas sobre Roosevelt, que representava o status quo e buscava a reeleição.
Como de costume na obra de Roth, o livro mistura ficção e autobiografia. A estória (ou história) é narrada por um menino que tinha sete anos na época da eleição e morava em um bairro judeu na cidade de Newark (NJ), exatamente como o próprio Philip Roth, que tinha sete anos em 1940 e morava em um bairro judeu na cidade de Newark (NJ). O nome do narrador também é Philip Roth. Esta perspectiva, que não é inteiramente nova na obra de Roth, torna possível mostrar o efeito da política dentro de casa, pois o menino Philip ouve pelo rádio os acontecimentos e vê seus desdobramentos nos lugares mais íntimos da família.
Lindbergh não instaura uma ditadura, não tensiona muito com as demais instituições, não promove caça aos judeus, não impede seu acesso aos cargos. Mas seus pequenos gestos, um baile em Washington com a presença de Ribbentrop, alguns programas pequenos e pontuais dedicados à integração dos judeus na sociedade, e sobretudo sua recusa em condenar Hitler — baseada em um belo discurso pacifista que diz: “não vamos entrar em uma guerra que não é nossa” — são suficientes para ampliar exponencialmente um sentimento político essencial, um sentimento com o qual Roth abre e fecha o livro: o medo.
Inicialmente, os judeus de Newark estão cientes do que está acontecendo na Europa, mas não têm medo de Hitler. Entre eles e os nazistas há, além do oceano, Roosevelt e sua postura francamente contrária ao governo alemão. A eleição de Lindbergh faz surgir indignação e revolta entre os judeus de Newark, mas não medo exatamente, pois no livro esse sentimento começa a surgir aos poucos e sem origem muito definida para os personagens ao longo dos primeiros meses de mandato. O medo propriamente surge no momento em que o antissemitismo começa a se expressar de modo concreto e visível na sociedade. Lindbergh não precisa vociferar contra os judeus para que o antissemitismo apareça de modo não declarado no hotel, de modo explícito no restaurante ou de modo brutal nas ruas. A opressão não vem de um adversário claro e definido, pois ela vem da sociedade e esta não existe de forma monolítica; em um mesmo restaurante, pode-se ser xingado por um cliente e protegido pelo proprietário do negócio; se um hotel fecha as portas, outro pode abri-las.
Forma-se com o passar do tempo um ambiente com poucas definições a respeito do que realmente foi feito, do que é verdade ou falso, das intenções e possibilidades de ação, um ambiente em que é muito difícil definir o que está acontecendo e o que não está. Para que este ambiente se instale, é importante que não exista uma ditadura, pois quando há um ditador sabe-se com clareza contra quem se deve resistir ou lutar. Ao longo do livro, no entanto, as ações todas dos personagens se pautam por esta indefinição, por esta falta de clareza a respeito da opressão, que no entanto está presente na forma do medo.
Esse ambiente indefinido marca também cada um dos personagens judeus, que mantêm relações distintas, ambíguas ou mesmo contraditórias com o governo e com o antissemitismo a ele associado. O pai se opõe ao presidente, mas cogita participar de um programa federal de assentamento de judeus; a mãe se ocupa da proteção da família, mas se recusa a fugir para o Canadá; o irmão mais velho, ídolo do jovem Philip, simpatiza com o governo; a tia se deslumbra com a ascensão social decorrente de seu trabalho para o governo e rompe com a família; o primo manobra para ir à guerra contra Hitler e, quando volta semanas depois, se aliena completamente do que está acontecendo.
Neste ambiente indefinido, o medo tem terreno favorável precisamente porque não encontra uma instituição, um ato oficial ou um programa de governo em que possa se justificar de forma cabal. Se os judeus de Newark tivessem algo para o que apontar a fim de que seu medo encontrasse legitimidade indubitável, talvez ele fosse muito menos destrutivo para a família do pequeno Philip. Sem ser atacada diretamente pelo governo, a família é inteiramente destruída pelo medo criado por ele. Sem uma ordem claramente antissemita, mas com pequenas ações relacionadas aos judeus — algumas de aspecto positivo —, os personagens se condenam mutuamente como paranoicos ou colaboracionistas; ambas as acusações são verdadeiras, mas nenhuma delas encontra um fundamento sólido e indiscutível para se justificar. A incerteza e a necessidade de deduzir a partir de dados ambíguos minam inteiramente as relações entre os judeus de Newark, destroem a família de Philip, mas não alteram a estrutura política do país. Do ponto de vista da estrutura estatal, não há mudanças significativas, mas a destruição nas vidas das pessoas é inequívoca.
Muito tem-se falado, de uns anos para cá, nos tempos sombrios e nas possibilidades de ditaduras de direita ao redor do mundo. O risco existe e deve ser enfrentado, mas há também quem diga que, na verdade, o autoritarismo contemporâneo não precisa mais de ditaduras com tanques nas ruas, fechamento do congresso, censura a jornais ou absorção do judiciário. Se essa tese é correta, então o livro de Roth é mais interessante do que as distopias feitas no século 20, pois ele adere mais à situação contemporânea.
Até o momento, Trump não deu mostras de que pretende efetivamente censurar jornais, matar opositores ou absorver o judiciário. Bolsonaro (e, ao que parece, também Orbán, Erdogan e Duterte) tem dado passos rumo a uma ditadura propriamente, a um governo que tome para si a responsabilidade por atos claramente opressivos. Mas, mesmo que não chegue a fazê-lo, mesmo que permaneça “apenas” no plano das ameaças mais ou menos veladas, o estrago provocado pelo medo pode ser devastador. Tenho a impressão de que, para certas parcelas da população brasileira, como os indígenas, os favelados, os LGBT e, em menor escala, os trabalhadores da cultura, o estrago já é enorme, e talvez não seja muito visível porque acontece no plano individual, familiar, comunitário, ou seja, lá onde o medo encontra morada e destrói vidas.
Assim como nos EUA de Lindbergh, as instituições estão funcionando sob Trump ou Bolsonaro, mas os estragos já estão acontecendo. Não é preciso que se construa um estado como Gilead, ou algo como o Grande Irmão, tampouco um regime como aquele que criou o gulag para que a opressão insidiosa e destrutiva contra parcelas da população se instale. No livro de Roth, o governo pelo medo, a destruição das vidas sem a destruição das instituições, ou sem a construção de instituições francamente opressoras, é efetiva e real, e é nesse sentido que considero Complô contra a América, escrito no imediato pós-11 de setembro, uma leitura particularmente interessante para esses tempos sombrios do século 21.
Thiago Dias é doutor em filosofia pela USP e pesquisador do Centro de Estudos Hannah Arendt.