O cinema e a decência no ato de acusar
Cena de "Os oito odiados", de Quentin Tarantino (Foto: Divulgação)
Ainda antes de entrar no curso de Direito, assisti a um filme estrelado por Al Pacino, chamado …And justice for all, em que o ator interpreta um advogado idealista que tenta desesperadamente tirar da cadeia um jovem injustamente acusado de um delito.
A certa atura, ele recebe a notícia de que seu cliente teria se rebelado, assassinado alguns outros presos e funcionários, e estava amotinado, mantendo pessoas como reféns, até ser finalmente abatido pela polícia. Tudo isso depois de ter sido brutalmente violentado (sexualmente, frise-se) por outros presos.
Talvez por influência desse filme, durante os anos de faculdade jamais me vi atuando na área penal. Imaginava que não suportaria a responsabilidade de ter nas minhas mãos o destino de qualquer pessoa que estivesse de alguma maneira exposta àquele tipo de violência, aterradora para um jovem de classe média, branco, e confortavelmente instalado na casa dos pais, recebendo todo o cuidado e proteção. Havia em mim, claramente, a ideia de que nenhuma ação humana mereceria aquele tipo de consequência trágica como resposta punitiva, mesmo em se tratando de réus culpados.
Ao final da graduação, entretanto, logo após a promulgação da Constituição de 1988, acabei prestando concurso para o Ministério Público, órgão extremamente fortalecido e redesenhado para a tutela de outros importantes direitos coletivos e difusos, e reconfigurado, inclusive, no que se refere à acusação criminal, a ponto de se dizer (quantas vezes ouvi isso!) que a instituição já não poderia ser vista como um órgão de “acusação sistemática”, mas que poderia e deveria velar pelos interesses da própria pessoa acusada de delito, para que os seus direitos fossem preservados, para que a sua inocência presumida fosse levada a sério e para que a eventual punição não ultrapassasse um milímetro daquilo que a lei estabelecia. Havia até um bordão para isso: “não somos mais promotores públicos, mas promotores de justiça”.
Ao longo desses quase trinta anos, portanto, alimentei a esperança de que a função de acusar, vale dizer, de trabalhar para que um ser humano qualquer fosse submetido aos horrores do cárcere, poderia ser exercida com dignidade, desde que fossem observadas algumas premissas.
A primeira coisa que sempre esteve clara para mim é que eu jamais poderia me colocar na condição de censor moral de quem quer que fosse (Não julgueis, porque com o mesmo critério que julgardes também sereis julgados, diz a escritura). Desde sempre, portanto, vi o crime, por mais monstruoso que parecesse, como algo humano, que precisava de uma resposta humana, dentro dos limites do que a Lei e somente ela poderia estabelecer, como condição necessária à manutenção da vida em sociedade, mas sem qualquer autoridade de juízo moral sobre quem a tivesse violado.
A segunda coisa é que, na condição de promotor de justiça, eu era apenas um servidor público, remunerado para fazer um trabalho técnico, nem mais nem menos, e sem qualquer preocupação, portanto, em obter “vitórias”, mas apenas em cumprir com minhas obrigações funcionais da melhor forma possível.
Por isso, mesmo quando atuava no júri, falando para pessoas do povo, nunca me senti confortável em agredir ou insultar as pessoas que se apresentavam como acusadas. Sempre achei isso totalmente desnecessário e de uma covardia sem tamanho.
Causa-me um imenso desconforto, portanto, ver o que está sendo exposto às escâncaras para o grande público, mas que já vem sendo percebido há muito tempo por quem acompanha de perto (de dentro, na verdade) o caminhar da Instituição na sua atuação criminal ao longo de todos esses anos. Há muito tempo já escrevi sobre aquilo que me parece um problema seríssimo na seleção e na formação dos quadros que compõem o sistema de justiça, submetidos a concursos que muito mal avaliam a capacidade de decorar irrefletidamente textos de lei ou de informativos dos tribunais superiores e desprezam qualquer outro tipo de competência, como, por exemplo, a capacidade de compreender os limites éticos e políticos de sua atuação.
O triste resultado, como já disse várias vezes, é que temos um grande número de colegas que realmente alimenta uma certa superioridade moral que os habilita a vestir a capa de vingadores contra as ações de pessoas moralmente degeneradas, que merecem a punição não exatamente pelo que supostamente fizeram ou fazem, mas pelo que são, o que significa, inclusive, que a Lei é apenas um detalhe, e muitas vezes um embaraço, uma filigrana (pra usar uma expressão em voga) que pode e precisa ser ignorada em nome de questões de ordem moral ou política.
Pior que isso, aliás, é ver esse comportamento ser tolerado e até estimulado em nome de interesses corporativos, que identificam nessa forma de se apresentar à sociedade uma maneira de assegurar prestígio e com ele manter determinadas vantagens econômicas para a carreira ou mesmo na forma de palestras regiamente remuneradas, vazias de conteúdo, onde tudo que se pretende é entorpecer a plateia desejosa de vingança com um discurso proselitista e emocional.
Na filmografia de Tarantino há um genial diálogo entre um carrasco e sua futura executada, uma mulher que está sendo levada para ser enforcada numa determinada cidade do Oeste estadunidense, desses trechos que só poderiam estar presentes num clássico como Os oito odiados.
Transcrevo:
“Muito bem, você é procurada por assassinato. Só para minha analogia, vamos supor que você fez isso. John Ruth quer levar você até Red Rock para ser julgada por assassinato. E, se for considerada culpada, o povo de Red Rock vai enforcá-la na praça da cidade, e eu, como carrasco, farei a execução. E se todas essas coisas acabarem acontecendo, é isso que uma sociedade civilizada chama de ‘justiça’. Entretanto, se os parentes ou amigos das pessoas que você matou estivessem lá fora neste momento, e depois de quebrar essa porta, eles arrastassem pela neve e a pendurassem pelo pescoço, isso, isso seria um linchamento. Agora, a parte boa do linchamento é que aplaca a sede de vingança. A parte ruim é que pode fazer o certo se tornar errado.”
“Qual a diferença?” (alguém pergunta).
“A diferença sou eu. O carrasco. Para mim não importa o que fez. Quando eu enforcar você, não terei satisfação pela sua morte. É o meu trabalho. Enforco você em Red Rock, parto para outra cidade e enforco outro lá. O homem que puxa a alavanca, que quebra o seu pescoço será um homem imparcial. E essa imparcialidade é a essência da justiça. Justiça aplicada sem imparcialidade corre sempre o risco de não ser justiça.”
Em suma, talvez esteja sobrando decoreba de legislação e faltando bom cinema na formação dos operadores das diversas instituições jurídicas.
Elmir Duclerc é promotor de Justiça em Salvador-BA e professor adjunto de Direito Processual Penal da UFBA