O choro triste da História
Imagem que acompanha o poema 'Puerilia', do projeto 'Tróiades' (Foto: Evelyn Simak)
“A tarefa revolucionária se tornou em parte uma tarefa de tradução.”
Comitê Invisível
“Todos calculam – eu o sinto – o grau da intensidade do luto.”
Roland Barthes
1. Tarefa-renúncia
Tróiades – remix para o próximo milênio (Patuá, 2015), do poeta Guilherme Gontijo Flores, é uma súmula curiosa de formas e procedimentos que caracterizam o elemento político que se (re)instalou no coração de parte significativa da poesia escrita no Brasil nos últimos anos. Disponível inicialmente online, o livro foi impresso depois em uma caixa, na qual estavam reunidos 25 cartões postais contendo poemas e fotos. Feito de retalhos de textos e imagens, o livro foi escrito numa língua alheia, exilada, língua sempre do outro. O recorte, a tradução e a montagem foram os seus princípios ordenadores, uma vez que o poeta tratou de compor os seus versos a partir de fragmentos de três tragédias clássicas por ele traduzidas livremente (Troiades e Hecuba, de Eurípedes, e Troades, de Sêneca), além de trechos do aforismo 9 das Teses sobre o conceito da História, de Walter Benjamin. A manipulação desse material revela, no livro, algo mais do que o enorme (e já provado) talento tradutório do poeta: nela estão em jogo algumas questões chave do nosso tempo: o processo de escuta cuidadoso, de atenção às falas desconexas do mundo, indica que, como leitor especializado, Gontijo Flores é capaz de localizar em textos antigos, alguns francamente esquecidos, ecos e urgências do presente histórico. O anacronismo aí delineado, a sobreposição de tempos e perspectivas é posta em destaque, tornada possível mesmo, a partir do ato da tradução, que em Tróiades é gesto político, uma vez que dá passagem a formas e sentidos arcaicos que sobrevivem, revelando a conexão que mantém com a época atual e sua miríade incessante de violências e vítimas. A necessidade do lamento, a elegia como campo privilegiado e incontornável para a poesia, vêm se confirmar no livro, ao passo que a linguagem impessoal, dura e automatizada da comunicação de massas – selo do tempo – encontra aqui contraponto, uma vez que a gravidade, as lacunas, o minimalismo dos poemas se opõe à banalização da língua do Mercado, espécie de fala contínua que tudo pretende explicar e exaurir. Um outro procedimento decisivo em Tróiades expõe também o paradoxo radical da despersonalização que constitui o livro: a partir da chave de criação escolhida, o poeta sai de si, renuncia às suas próprias palavras em função da recolha das palavras do outro, disposto que está a apagar-se como sujeito individual, permanecendo como um agenciador, alguém coleciona e monta pedaços de discursos alheios. O resultado desse processo tem contornos estéticos claros, segundo os quais o elemento sensível que aí se desenha é expressão também de uma muito particular ética: a forma-fragmento impessoal que constitui o livro é objetiva e alarga a dor que se confina no horizonte do mito e das tragédias da Antiguidade. O que ali está posto cresce e se expande, podendo ver-se desdobrado em catástrofes de outros tempos, conforme as fotos que se projetam no livro dão a ver. Desse modo, o genocídio Armênio, a colonização da América ou a escravidão negra vivem também nas ruínas de Troia, que as prenunciavam, e a dor de Hecuba é também o sofrimento das mães e viúvas de Canudos, bem como das mães dos assassinados do Carandiru. O efeito da saída de si do poeta, sua voz, repercute ainda elemento bastante frequente na cena da poesia brasileira contemporânea: do mesmo modo que em Tróiades o poeta constrói os seus textos na ausência de sua própria dicção – numa poética da leitura que atualiza e renova o gesto da erudição, dando ao ele um caráter de combate e inteligência questionadora pouco usual nos Estudos Clássicos – o mesmo procedimento pode ser visto (com sentido diverso, é verdade) em livros como Um útero é do tamanho de um punho (CosacNaify, 2012), de Angélica Freitas, Maus poemas (7Letras, 2016), de Eduardo Sterzi e Mais cotidiano que o cotidiano (Azougue, 2013), de Alberto Pucheu, nos quais os poetas vão interessar-se pelo que há de sujo e apodrecido na linguagem comum, nas fórmulas do preconceito e do sexismo, nas ofensas e autoritarismos que habitam a fala de todos os dias, circulando tantas vezes como veneno invisível. Sem recorrer à tradução, como faz Gontijo Flores, mas insistindo no recorte e na colagem, na tarefa paciente da escuta do aleatório, os autores vão agarrar essa matéria obscura para erguer com ela os seus poemas, num lance de desapropriação e deslocamento (de si, da linguagem) que desfaz a trama da ideologia, desnaturalizando aquilo que parecia evidente e expondo, a partir do arquivo da violência que passa a se formar no corpo desses livros, a capacidade política que a poesia tem de tirar do mais terrível a sombra mínima da beleza, o incômodo da provocação.
2. Antimonumentos ao massacre
Tróiades é um livro enlutado. Todo o sofrimento experimentado parece interessar ao seu projeto, que se lança sem cessar em direção ao sangue derramado através da História, assumindo que “Todo luto chorado será meu luto”, conforme se lê em “Cripta”. A perspectiva da dor individual, que confina cada sujeito às suas perdas e à sensação única delas, é a pedra angular do livro, que raramente resvala para a máxima de cunho universal e despersonalizada. Apesar da proximidade com a forma do aforismo que muitos dos seus textos têm, Gontijo Flores prefere dar uma feição particular à expressão do desespero, conferindo aos poemas um ponto de vista sempre subjetivo, calcado a partir da experiência privada da morte, da tragédia, da despossessão. O fato de o livro fazer-se a partir dos escombros refeitos de tragédias, isto é, de textos sobretudo dramáticos, é essencial: o que eram falas dos personagens, reverberações dialogais das perdas e da tristeza se transforma em Tróiades em forma propícia à expressão de uma perspectiva individual e internalizada da dor. Ao mesmo tempo, as fotografias que escrevem também os poemas, sendo deles parte fundamental e inseparável, conferem igualmente “fisionomia às datas”, para falar com Walter Benjamin, na medida em que o panorama histórico que vão traçando está marcado com as expressões particulares, irrepetíveis, do impacto que a violência, a privação ou a morte massiva podem ter sobre o homem. As cabeças decepadas, o corpo coberto de marcas de chicote, a cova aberta onde jazem, anônimos e de olhos abertos, vítimas de guerra são todas imagens que, no plano da linguagem verbal, têm o seu símile em poemas que apresentam o horizonte fechado do corpo que se despedaça, do supliciado a quem tudo foi arrancado: “Levanta desgraçado/tira a cabeça/o pescoço do chão/Não há mais reino nem rainha/Não tente opor a proa/contra o acaso das ondas”. Se Gontijo Flores não opera como Ricardo Domeneck em Medir com as próprias mãos a febre (7Letras, 2015), no qual o poeta paulista recorre aos nomes e às biografias de personagens femininas arrastadas pela violência de sua época, dando a elas, finalmente, voz e visibilidade (a perseguida política Ísis Dias de Oliveira, Maria Bonita, a rainha destronada Constança de Castela, Ana Emília Sólon Ribeiro), o autor de Tróiades parece estar mais próximo do que fazem Carlito Azevedo em Monodrama (7Letras, 2009), Fabiano Calixto em Nominata Morfina (Corsário-Satã/Pitomba, 2014) e Pádua Fernandes em Cálcio (Hedra, 2015) – este último um livro de poemas escrito especificamente em torno da memória da ditadura militar de 1964 e dos regimes de exceção do Cone Sul. Tanto nesses volumes como no de Gontijo Flores, a estratégia é a mesma: elaborar o luto, inventariar as perdas e os mortos construindo para eles, no corpo dos poemas, pequenos antimonumentos ao massacre – peças o mais das vezes antilíricas que recordam a catástrofe ao expor os seus restos, suas ruínas, o silêncio enorme que cresce a seu redor conforme passa o tempo e a desmemória vai encobrindo tudo. Poesia dos escombros, feita com a única linguagem possível (a dos destroços da cultura e da história), Tróiades promove um fino ajustamento entre a forma e o fundo, a matéria e a expressão. Os vinte e cinco breves poemas que o compõem são síntese e destino possível da poesia política que se escreve hoje no Brasil.
*
A coisa mais bela
Pra que chamar os deuses
se nunca ouviram
quando chamados?
Vamos correr ao fogo
que hoje a coisa mais bela
é morrer na pátria incendiada
O sol breu sobre o céu gris
e a chama não impede
a cobiça nas mãos do vencedor
Vai pé caduco
como puder para saudar
tua cidade arruinada
Tombeau
Um anjo
tenta se afastar daquilo que olha
esbulhado boquiaberto
e de amplas asas
encara no passado
nossa cadeia de acontecimentos
como a catástrofe inacabada
ruína em ruína
ante seus pés
Preferia pousar
acordar os mortos
remontar os fragmentos
porém do paraíso sopra
um vendaval
que enlaça suas asas
e ele não sabe mais fechá-las
arrastado ao futuro
ele vai de costas
e a pilha de ruínas à sua frente
alcança o céu
Temor/Tremor
Podem ameaçar com chamas chagas artes
do suplício fome sede pestes várias ferro
afundado nas vísceras queimadas flagelo
cárcere sem luz e todo o mais que ousar o
vencedor em fúria temeroso
Gustavo Silveira Ribeiro é doutor em Estudos Literários pela UFMG, onde atua como professor adjunto e pesquisador do Acervo de Escritores Mineiros
(1) Comentário
O ensaio, por si só, nos co-move a ler o poeta. Ditos em luz forte, faiscando sobre o soturno/noturno do projeto poético de que temos uma amostra. Poética “luturna” (inevitável o neologismo) porque assim tem sido a história. E a poesia, se a olha, não consegue sorrir. E penteia os cabelos ao contrário, à Benjamin. Parabéns a Gontijo Flores e a Gustavo Ribeiro.