Privado: O Brasil recalcado

Privado: O Brasil recalcado

Marcia Tiburi

O outro é sempre uma questão de hermenêutica. Para dizer quem é o outro, preciso relacionar-me a ele e tentar expressar, com o desconto de uma distância que jamais será apagada, algo sobre ele. Descontados os senões, qualquer coisa que possa ser dita sobre o outro é sempre precária, motivada por aspectos socioculturais, como moral e religião, compreensão de classe e desejos nem sempre conhecidos. Tzvetan Todorov em A conquista da América – a questão do outro faz uma análise de conquistadores como Colombo e Cortez, que, chegando ao mundo que era seu desconhecido, o interpretaram segundo os limites próprios a toda perspectiva. Tais limites são o próprio conhecimento daquilo que já se viu. Ele emperra o encontro com o novo se uma ativa compreensão do novo não está em cena. No caso dos conquistadores, o que se apresentava era o outro exterior, aquele com o qual não nos relacionamos imediatamente e que vem a nos constituir quando encontrado se não o destruímos antes no habitual conluio entre medo e dominação que define a história das relações e, portanto, da política como um todo. Esse outro exterior poderá nos constituir, ou seja, explicar algo de nós mesmos, quando estamos posicionados no lugar do “mesmo”. Podemos, nós mesmos, ocupar o lugar do outro.

Exotismo com o outro

Tendemos a ter uma relação de exotismo com este outro que está, em nossa compreensão, ou seja, no espaço onde elaboramos nossas interpretações, do lado de fora. O exótico é sempre o estrangeiro e que nosso hábito mental-cultural, para não dizer senso comum, tenta sempre trazer para dentro daquilo que já conhecemos. Eis o malefício que o princípio de identidade – esta mania de redução do estranho ao comum – causa em nosso próprio processo de conhecimento. Seu resultado é uma traição: ele nos afasta do outro, quando promete aproximar. Eis a mentira do conhecimento que poderá ser controlada à medida que pressuponhamos a distância, o entre-nós, o intervalo no qual nenhuma compreensão frutifica senão aquela que nos ensina a respeitar o que não conhecemos e o que podemos conhecer, o alvo do nosso pensamento. Identificar, ou seja, trazer o de fora para dentro, é um fato mental ineliminável, mas ele pode ser freado em seu impulso devorador e render um conhecimento mais ético que envolve o respeito pelas coisas que existem.

Colombo encontrou os americanos, mas não quis saber deles. Não teve interesse em conhecer sua língua, nomeou-os índios por confusão – um furor nominativo, como diz Todorov – que nunca pretendeu esclarecer, já que se fez consolo por não ter atingido as tão esperadas Índias. Interpretou-os segundo sua fé cristã, sua compreensão da hierarquia governamental, e a fantasia do exótico que trazia consigo. Buscava, segundo Todorov – que compreendeu sua postura como a de um idiota que julgava os outros idiotas – mais a confirmação de suas ideias do que a verdade.

Não somos diferentes de Colombo. Até hoje, mais de 500 anos de inauguração do genocídio indígena que não cessa até o presente, padecemos da mesma mania de identificação.

Quinhentos anos depois ela se tornou, no mínimo, antiquada. E já o era em 1492, depois de mais de 1500 anos de filosofia na Grécia, onde nasceu. Tal mania é, na verdade, a paranoia de autorreferencialidade que constitui o padrão básico – a base aristocrática do conhecimento que não se percebe estrangeiro – de nosso modo de entender o mundo. Em outras palavras, a inevitabilidade do que somos é o que nos faz interpretar o mundo de um jeito ou outro, mas se não guardamos espaço para entender que o estranho também habita em nós, nos tornamos janelas fechadas para a diversidade da vida que está implicada na possibilidade de conhecer. O ideal da identidade que se usa até hoje em certos discursos e pesquisas em ciências humanas – o que dizer de quem não é especialista? – tornou-se uma verdadeira arma contra a compreensão, enquanto, ao mesmo tempo, promete a explicação de toda a diferença (palavra usada muitas vezes para designar a identidade!!!).

AntiColombo

Alberto Mussa restaurou em uma tradução (Meu destino é ser onça, Record, 2009) um mito do lendário povo tupinambá que ficou famoso desde o apavorante relato de Hans Staden acerca da devoração da qual conseguiu escapar ileso no século 16. A tradução é, na verdade, um legítimo rearranjo literário da Cosmografia universal do padre Thevet, que relatara histórias dos tupinambás. O mito explica a origem do mundo do ponto de vista tupinambá e que o autor recontou – sendo que não há texto tupi, mas apenas o texto francês – com a autorização de quem recebe uma herança ancestral e a liberdade do escritor em se apropriar das narrativas épicas. Amparase, quiçá, na frase de Eduardo Viveiros de Castro: “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”. A frase é estética e política, ainda que tenha seu lastro científico dado nas pesquisas sobre o aporte genético ameríndio da população brasileira. Assim, Mussa mesmo assume sua origem tupinambá, como deveriam, hoje, fazer todos os brasileiros que quisessem ser consequentes com sua própria história.

O “exagero heurístico” do enunciado reconhecido pelo próprio Viveiros de Castro tem a vantagem de minar a noção de identidade que emperra tanto a pesquisa quanto a compreensão popular sobre a vida dos coletivos indígenas. Para o antropólogo, a discussão sobre a identidade indígena soa absurda, afinal é índio – não qualquer um – mas quem os coletivos indígenas aceitarem como tal. É índio quem for reconhecido como índio no contexto da vida dos índios. Os órgãos do governo não podem muita coisa em relação a isso, mas exercem sua biopolítica de praxe, tentando definir o futuro das populações ao negar-lhes direitos – a posse da terra – sob o controle da definição do que é ou não ser índio. Uma definição ontológica que, na visão de Viveiros de Castro, é, ainda que, inevitavelmente, política. A isso a resposta “todo brasileiro é índio” é uma verdadeira afronta que põe a condição indígena em pé de igualdade e pronta para a guerra com as definições dos “brancos”, dos “políticos” e de todos os “inimigos” da causa indígena. Postura tupinambá incorporada e revivida. Afinal, na base dessa ideia está o fato de que precisamos reconhecer a morte por assassinato – passivo e ativo – dos sujeitos que viviam no Brasil – e nele apenas sobrevivem sendo mortos cotidianamente num genocídio histórico e cínico. A história apagada de nossa experiência brasileira brota, na reconstituição de Mussa, como o arcano que não se deixa morrer, grita sua memória perturbadora para o tempo do recalque sobre o qual se inventou a “identidade brasileira”.

Assim, o gesto de Mussa é o do antiColombo, contra a incapacidade de reconhecer, contra a idiotia – o autocentramento paranoico – que não percebe a existência do outro, ele lança a possibilidade de recriar. Associa a arte ao mito, a literatura ao seu papel fundador da cultura. Impõe a quem não tiver medo uma memória do trauma, a visão do que ficou pra trás, do que ao ser extirpado da experiência, machuca a construção de uma sociedade digna em que não seja necessário ostracizar o outro para poder ter um lugar ao sol. Traça assim – pela inclusão na memória – a chance de pensar um novo plano de convivência no presente entre o que somos, mas não estávamos, pela morosidade e pelo medo da discussão, capacitados a concluir sobre nós mesmos. Nosso destino é ser onça.

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Novembro

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