O blefe dos blefes
A filósofa Marcia Tiburi, autora de 'Ridículo político' (Simone Marinho/Divulgação)
No filme A cor do dinheiro, dirigido por Martin Scorsese, o personagem de Paul Newman, um experiente jogador de sinuca, se deixa engambelar pela figura aparentemente inofensiva de seu oponente. Com tacadas ridículas e ar abobado, o malandro encarnado à perfeição por Forest Whitaker leva o incauto Newman a subir o valor das apostas. Whitaker vira o jogo e varre as notas de dólar da mesa.
O novo livro de Marcia Tiburi revela a astúcia que existe por trás da aparência ridícula de políticos populistas (a maioria de direita). Trump, Berlusconi, Jair Bolsonaro e João Dória são alguns deles. Em vários capítulos curtos e instigantes, a filósofa mostra como as ações desses governantes e legisladores, muitas vezes de caráter estapafúrdio, mais escondem que revelam, por mais gritantes que sejam. Um de seus exemplos retoma Dória no impecável uniforme de gari, investindo-se da imagem de “limpador da cidade”. O ridículo do prefeito almofadinha de vassoura na mão, fingindo ser do povo, não apenas ofende a categoria dos garis, como esconde a verdadeira natureza de seu projeto de limpeza, como se viu nos contínuos episódios envolvendo a cracolândia, que poderiam figurar ao lado de conhecidas atitudes protogenocidas. O descaso com a verdade, o cinismo e a violência, além do evidente culto à personalidade são outras características desses personagens, analisadas com originalidade pela filósofa, que antes havia lançado Como conversar com um fascista, com o qual a nova obra dialoga.
Claro, esses políticos, com suas bravatas ora sorridentes, ora vociferantes, não possuem nenhum traço da dignidade meio torta do sinuqueiro de Whitaker. Ele, ao menos, se arrisca. Está sujeito a tomar uma surra – ainda mais sendo negro num país abertamente racista (na nossa falsa democracia racial, poderia ser morto). Já o golpista Temer literalmente fugiu do jogo, ao não comparecer à cerimônia de abertura das Olimpíadas no Rio. Logo ele, que já foi chamado de mordomo de filme de terror por Toninho Malvadeza (um gângster do ridículo?). Numa de suas divertidas metáforas, Tiburi o traduz como “o vampiro que vem sugar o sangue da população, mas não pode aparecer à luz do dia, senão pode morrer para sempre na vaia, como já morreu nas urnas”.
Os protagonistas deste livro rico em ideias e contundente em suas críticas vivem sob a proteção do conchavo e dos conluios interesseiros de classe. Jogam com ampla margem de garantias (as mesmas garantias que negam aos cidadãos). Justificam sua inclusão nesta nova categoria criada pela autora com projetos que vão do ridículo autoexplicativo de mover uma moção de repúdio contra a filósofa feminista Simone de Beauvoir, como fez um grupo de vereadores em Campinas, ao ridículo criminoso de propor um muro entre os EUA e o México, façanha do famoso topetudo ruivo. O preocupante, como bem aponta a autora, é que tamanha falta de seriedade é levada a sério por grande parte da população, iludida pelo circo midiático e de marketing.
O risível, ou mais especificamente o ridículo político, que há pouco se viu novamente ilustrado pela mala recheada do deputado afastado Rodrigo Rocha Loures e pelas gafes internacionais de nosso indesejado presidente, incapaz de diferenciar Noruega da Suécia, é resumido por ela como “uma espécie de estética cuja função é acobertar algo que atravessa, fantasmaticamente, a cena política”. E aqui a palavra estética não está colocada à toa. No interessante capítulo chamado “Unheimliche político: sobre a ‘estranheza inquietante’ e a experiência política”, Tiburi cita Freud, que definiu a estética como a “teoria das qualidades do nosso sentir”. Ou seja, algo que toca não apenas questões sobre o belo e o sublime, mas também nossos afetos. E aí que mora o perigo. É essa estética dominante, ou dominadora, pautada pela imitação, plastificação, publicidade, ostentação, pelo brega e pelo combate às artes, chamada ironicamente por Mark Fisher de “capitalismo realista”, que proporciona a naturalização do ridículo. É nossa anestesia perniciosa de cada dia. Afinal, como bem lembra a autora, “o controle das ideias e ações não acontece livremente sem um controle estético dos cidadãos”. Adorno, filósofo caro a Tiburi, também é citado. Para ele, a indústria cultural era uma ameaça à democracia. E é nesse aspecto, na discussão da estética como suporte para o ridículo político, em todos os âmbitos, macro e micro, que o livro é mais forte.
Impossível não pensar novamente em Dória em sua batalha contra os “feios, sujos e malvados”, quando mandou cobrir os grafites da cidade. Estava cobrindo também toda uma cultura de resistência, ação de artistas das periferias, os sem-galeria. Ou quando reforçou o policiamento contra pichadores, aos quais a escritora chama, numa feliz associação, de “filósofos selvagens a espalhar sua ironia semiótica pelas ruas”. Esse, aliás, é um dos temas que melhor aprofunda e, de certa forma, um resumo ou metonímia do que trata o livro: “A pixação (com x) é ação que propõe o fim da estética da fachada, o fim da estética como elogio da superfície acobertadora. A partir da gramática da pixação, dá-se um outro aparecer da cidade. Outra relação com o espaço surge a partir desse outro aparecer. A pixação é a gramática que exige a compreensão crítica da brancura dos muros. Uma linguagem suja – como é toda crítica em relação ao objeto fechado – no caso, em relação às muradas. Ela é ataque incisivo, mas ao mesmo tempo libertador. Ressignificação e transfiguração do lugar-comum. O que é um ‘lugar-comum’, no sentido do óbvio, do que todo mundo usa, pratica ou compra, torna-se, desde o pixo, um lugar in-comum. O in-comum é a entrada ou a produção de um comum político. É pela transubstanciação da cidade em pauta que esse comum se coloca como uma proposição, como um projeto que precisa ser sonhado. O grau zero da literatura é essa luta com o branco que a pixação expressa tão bem contra o fanatismo do alvor que corresponde, se pensarmos em um corpo humano, à plastificação geral. Cidades de plástico como Brasília, altamente excludentes, têm no pixo um sinal de que é preciso repensar a cidade. O pixo que ensina a repensar a cidade e suas margens habitadas por pessoas que atuam na cidade, que a veem com outros olhos. O pixo é efeito de um olhar.” Numa bela conclusão, escreve: “a pixação acorda a cidade de seu silêncio visual.”
Se às vezes parece exagerar, como quando compara a pichação ao Manifesto Comunista, ou a declaração de Galileu ante a Inquisição, de que a Terra se move, ao chamado rolezinho (“o rolê se ergue como revolta. Passear se torna uma ação afirmativa”) é para marcar mais fortemente uma posição. Pensando nas implicações de tudo que é levantado nesse livro, veremos que não há exagero. Tiburi não aponta a nudez estúpida do rei, como no conto de Andersen, mas praticamente o contrário: aponta para a veste sem corpo, a máscara sem rosto, a ostentação pura, representativa de nossa desigualdade, e para a capacidade inconsequente da parrésia, traduzida no poder muitas vezes intimidador de “falar merda”, como o discurso de Bolsonaro elogiando um conhecido torturador. Aponta, em suma, para a política transformada em publicidade e deixada à deriva para o capital; para o choque neoliberal, que “age de maneira biopolítica, ou seja, calculando quem vai viver e quem vai morrer”. Os trajes dos reis de nossa fábula insidiosamente real, ou sociedade do espetáculo, na famosa expressão de Guy Debord, são na verdade trajes de bufões, insiste. E assim “vestidos”, não são levados a sério e “chegam aonde pretendem e fazem o que querem”. Na plateia desse desfile nefando, vivemos o vazio das ideias, das emoções e ações. Tornamo-nos os homens-ocos de T.S. Eliot.
As instâncias de micropoder, tal como na genealogia de Foulcault, também merecem destaque na investigação da filósofa. Seu capítulo sobre “madamismo”, nesse sentido, é uma aula de antropologia social – e tem tudo a ver com os conceitos de manipulação da imagem e do esteticamente correto (basicamente, submissão à indústria cultural), estampados na capa como subtítulo. Ao analisar o filme Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, ela reforça a ideia de que a luta de classes está também dentro das casas. O episódio envolvendo o presente da empregada – um jogo de chá de que a patroa, famosa designer, se envergonha – é profundamente exemplar de que gosto, sim, se discute. É política na sua acepção mais imediata, e está na raiz de bullyings e preconceitos. “(…) o gosto precisa ser discutido no contexto de sua produção social. Cada um introjeta prazeres, desejos, gozos que são ofertados pelos sistemas dos consensos que o tornam incapaz de compreender como se gosta ou desgosta de algo. Há todo um lastro de habitus, para usar uma expressão de Pierre Bourdieu em O poder simbólico, que sustenta o gosto. A ilusão individualista parte da presunção de que se é livre para gostar disso ou daquilo. Seria útil, no propósito de compreender a subjetividade saber que o gosto tem uma história e o desgosto também. Que aquilo que sentimos não é natural, que as comidas que agradam ao nosso paladar chegam até nós muito prontas, assim como nossas ideias, e definem nosso gosto.”
Particularmente interessante também é a defesa que a autora faz da transidentidade, num contexto de discussão sobre o corpo entre a estética e a política. (E aqui caberia também a questão do “não-corpo” nas redes sociais, onde, no dizer da escritora, não somos mais que “espectros”.) Tiburi fala no “homem-plástico”, em substituição ao “homem-máquina” da Ode triunfal de Álvaro de Campos, o heterônimo modernista de Fernando Pessoa: “Nossa carne é moldada nas academias como se fosse de plástico, nossa pele deve ser lisa como ele. Materialidade morta, o plástico usurpa o lugar da natureza perecível e promete o imperecível”. Mais adiante, afirma: “Uma mulher é, portanto, uma montagem que finge ser natural. Um homem também. Só a travesti seria sincera ao ser montagem de si e desmontagem do gênero”. E completa: “é o que causa estranheza, o que não se enquadra nas normas, que tem algo a nos dizer”.
“Onde estou, que não estou em mim?” A pergunta do poeta Herberto Helder ressoa por todo o livro. É uma pergunta que certamente os arautos do ridículo político nunca se fazem, nem farão. Voz romântica, talvez, idealista e necessária, Márcia Tiburi se arrisca sem blefar. Talvez essa seja uma boa definição de reflexão crítica. Como ela mesma diz, é o que nos falta.
Daniel Benevides é jornalista
(2) Comentários
Mais uma esquerdista que se esconde atrás de uma suposta filosofia da superioridade de seus pensamentos em relação a raça humana que escolhe o suposto candidato João Dória para discorrer o ódio do declínio que a esquerda que tanto mal fez ao país nos últimos 13 anos vem sofrendo de forma irreversível, quando descobrimos que Luladrão e Cia eram somente bons vivant no poder!
Que texto!
Quero o livro.