O baú de Cortázar
Transcorridos 26 anos da morte de Julio Cortázar (1914-1984), quando parecia não restar um único inédito a ser exumado, publica-se uma volumosa miscelânea com textos de sua autoria intitulada Papeles Inesperados, lançada em espanhol em 2009 e agora acessível em português graças à iniciativa da Civilização Brasileira. “Livro-almanaque”, como sustenta no prólogo o organizador, Álvarez Garriga, Papéis Inesperados reúne escritos de teor diverso e de variada cronologia agrupados em três blocos: “Prosas” (o mais extenso, subdividido em Histórias, Histórias de Cronópios, Do Livro de Manuel, De um Tal Lucas, Momentos, Circunstâncias, Dos Amigos, Outros Territórios e Fundos de Gaveta), “Entrevistas diante do Espelho” e “Poemas”.
Em muitas dessas páginas, encontramos verdadeiros “túneis” que se comunicam com o melhor da ficção cortaziana, encenando estratégias e tópicos conhecidos do leitor, tal como ocorre em “Ciao, Verona”, variação em torno de um gênero e de um procedimento utilizados com maestria pelo escritor em alguns de seus contos célebres: a forma epistolar e a ambiguidade pronominal. Crônica de um triângulo amoroso, interminável carta de despedida, o texto enreda as posições do remetente, do destinatário e do “terceiro” até torná-las indiscerníveis. Afirmação análoga pode ser feita em relação a um belíssimo relato breve: “O Outro Narciso”, atualização do tema do duplo convocado pelo pássaro que ronda a própria imagem refletida num espelho retrovisor.
O melhor Cortázar também está presente numa série de textos em que a progressiva intromissão da experiência e do registro de vida alia-se à percepção de uma ordem outra que habita o cotidiano: “A Tosse de uma Senhora Alemã”, “A Favor do Bilinguismo” e “Do Outro Lado”. Nesse último, nota-se a comunicação com vários escritos em que a literatura cortaziana já canonizada volta à cena, como, por exemplo, por meio da feliz coincidência que reúne Cortázar, Michel Portal (instrumentista renomado) e um saxofone de Charlie “Bird” Parker, a qual permite ouvir ecos do conto “O Perseguidor”.
Radicalizando o viés autorreflexivo da escrita, alguns textos “escorpiónicos” – conforme expressão cunhada por Davi Arrigucci Jr. – indagam e nesse ato “envenenam” ou fazem recuar as convenções da linguagem, suas leis e modos de representação e seus lugares-comuns (“Teoria do Caranguejo”, “Em Matilde” e “Lucas, Suas Erratas”). O livro reúne ainda primeiras versões de narrativas ulteriormente publicadas (“Relato com um Fundo de Água”) ou suprimidas por diversas razões (capítulos de O Jogo da Amarelinha e do Livro de Manuel, episódios protagonizados por cronópios ou por Lucas) que despertam o interesse de leitores especializados ou simplesmente admiradores de Cortázar.
Intelectual atento à realidade
Nas seções intituladas Momentos, Circunstâncias e nas Entrevistas, o leitor reencontrará a figura do intelectual atento à realidade circundante, que não cessou de se pronunciar em relação a múltiplas questões: os vínculos sempre problemáticos entre nacionalismo e literatura (“Resposta a um Questionário”) ou revolução e literatura (“O Criador e a Formação do Público”); a denúncia ininterrupta de aberrações cometidas por diversas ditaduras latino-americanas, em especial a chilena e a argentina (“Chile, Outra Versão do Inferno” e “Um Brinde, a Taça no Alto”); a análise de dispositivos legais perversos como a pena de morte, de processos de marginalização e de emergência de tribos suburbanas (“Três Notas Complementares”); o tratamento desigual embora igualmente efêmero dado pela imprensa europeia a certos acontecimentos (“Polônia e El Salvador: Maiúsculas e Minúsculas”).
Evidentemente, não faltam nesse conjunto pronunciamentos a favor da Revolução Cubana, alguns plenamente justificáveis de uma perspectiva histórica, como as respostas dadas à revista Life, em 1969, e outros textos tardios, um tanto incômodos para o leitor dos dias de hoje (“Novo Itinerário Cubano”).
Por fim, merece destaque o trabalho de Ari Roitman e Paulina Wacht, tradutores experientes no âmbito das letras hispano-americanas, inclusive da produção do próprio Cortázar.
Papéis Inesperados
Julio Cortázar
Trad.: Ari Roitman e Paulina Wacht
Civilização Brasileira
490 págs. – R$ 62,90