O argumento “liberal” antivacina como farsa
O cara que se sente “liberal” por defender a liberdade de alguém não tomar vacina contra a Covid-19 é só um idiota (Foto: Eduardo Matysiak)
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ERRATA: No dia 30 de julho de 2021, ilustramos essa coluna com uma fotografia que não foi creditada e para qual não pedimos autorização de uso para o autor. A autoria da foto é do fotógrafo e jornalista Eduardo Matysiak, a quem pedimos desculpas pelo erro e reforçamos nosso compromisso em creditar corretamente todos os autores de conteúdos veiculados pela Revista Cult.
Neste momento, em toda parte do mundo, dos países vacinados como França ou Estados Unidos aos subvacinados como o nosso, há um conjunto significativo de pessoas que anuncia a sua disposição a não se vacinar e/ou proclama o mais profundo desacordo ante a possibilidade de uma vacinação universal e obrigatória. Muitas dessas pessoas apresentam razões para não se vacinar que sequer podem ser consideradas argumentos, vez que estão abaixo de um nível sério de racionalidade. Enumero algumas.
A resistência antivacinas
Em primeiro lugar, há quem ainda hoje subestime o perigo e a letalidade da Covid-19, apesar de tudo o que vimos e sabemos. Seja por se considerar invulnerável, seja por achar que o risco de morrer, que efetivamente corre, é desprezível. Muitos foram incentivados por políticos com pouco escrúpulos a aderir a essa crença. Para tanto, minimizam a quantidade de mortos, buscam outras razões para os óbitos e atribuem ao jornalismo, sempre considerado inimigo, uma considerável e mal-intencionada dose de exagero e drama a respeito da tragédia.
Há razões ainda piores. Há aqueles que se apegam a invencionices como a de que a vacina comporta efeitos colaterais graves, tais como infertilidade. O músico Eric Clapton, por exemplo, foi um dos que foram vistos verbalizando tão delirante crendice. Há também os que compraram histórias de conspirações mirabolantes, como o ator da Globo que se recusa a tomar a vacina por acreditar que em todos os vacinados são injetados microchips. Uma pesquisa recente nos Estados Unidos descobriu que um em cada cinco estadunidenses acredita no absurdo de que o seu governo está usando a vacina para microchipar a população. E para quem acha os norte-americanos ridículos, recomendo não esquecer que a popular teoria da metamorfose em jacaré de quem se vacina foi expressa por ninguém menos que Sua Excelência, o presidente desta República. Conhecendo a destreza intelectual do mandatário, aposte você que ele estava brincando. Eu, não.
Além disso, há os que não creem em vacinas anticovid ou não creem nas vacinas fabricadas por determinada empresa. Vimos há pouco a ex-jogadora de vôlei que fez vídeo declarando desconfiar de vacinas em geral, mas que estaria tomando “a menos pior” e apenas porque precisava disso para poder viajar para outros países. Essa atitude deu origem à figura que batizamos no Brasil de “sommelier de vacinas”, postura consideravelmente desconhecida em um país em que a cultura vacinal é tradicionalmente disseminada. Por trás disso, novamente está o presidente da República e o movimento político que ele lidera, que fez especificamente desta dimensão o seu cavalo de batalha. “Descreiam das vacinas indicadas por cientistas”, disse, “acreditem no medicamento X ou Y, indicado por mim e pelos meus, que não entendemos nada do assunto, mas sabemos o que é melhor para vocês.” E não é que muitos acreditaram?
Por fim, há também os que, além de uma ou outra das razões acima, não acreditam nas instituições que cuidam da Saúde Pública, sejam nacionais ou internacionais, uma vez que o movimento trumpista e bolsonarista lhes ensinou que todas as instituições foram infiltradas por conspiradores que sustentam ideologias malignas e, por conseguinte, estão definitivamente comprometidas. Não se crê na Anvisa nem na OMS, não se crê na Universidade ou na Ciência, não se crê no jornalismo científico, não se crê em qualquer instituição epistêmica, mas se crê nas diretivas do bolsonarismo, distribuídas por mídias digitais, ensinando que vacinas devem ser evitadas, principalmente uma certa “vacina chinesa”. As digitais do bolsonarismo novamente estão na arma do crime.
O problema mais grave é que pessoas que sustentam essas convicções, conforme dizem pesquisas, estão pouco dispostas a mudar de opinião. O que projeta um cenário em que um conjunto de pessoas não vacinadas manterá o vírus ativo, fornecerá a base para mutações para as quais as atuais vacinas não servem, e nos atará indefinidamente ao pesadelo que nos fez praticamente jogar fora os dois últimos anos das nossas vidas.
Vacina obrigatória: por que não?
Como enfrentar a questão dos últimos resistentes à única forma eficaz de frear a pandemia, que é a imunização? Parece claro até aqui que só há um jeito justo, simples e universal de fazer face a isso: a vacinação obrigatória. Por que não fazê-lo?
Justamente a este ponto da história é que aparece o argumento que absolutiza a liberdade individual. E ele diz simplesmente que governos não têm o direito de violar de tal maneira a liberdade dos cidadãos. Mesmo que o façam para lhes inocular um imunizante que vai não apenas salvar-lhes a vida, mas impedir que eles façam parte da cadeia de transmissão do vírus que está matando os seus concidadãos. A liberdade, alegam, está acima de tudo, até do bem maior para o maior número possível de pessoas. E não pode ser suprimida, nem que em razão disso muitas pessoas plausivelmente adoeçam e morram.
O pior é ver este argumento ser apresentado, no Brasil, como um corolário do liberalismo. Bolsonaro e os seus filhos afirmaram tal coisa, Rodrigo Constantino sustentou esta tese recentemente. Aliás, dentre as morbidades intelectuais surgidas na pandemia, o “liberal contra a vacina obrigatória” é uma das mais virulentas. Alguns dos autodenominados “liberais” brasileiros, como Caio Coppolla, já vinham gritando contra a “perseguição às liberdades” no caso das medidas de lockdown. Agora, o foco está na liberdade de não se vacinar.
Ora, convocar o liberalismo para defender o que é só um egoísmo voluntarioso é um embuste. Não há como derivar do liberalismo a ideia de que ninguém deve compulsoriamente tomar uma vacina que evite que ele mate os outros. Sem mencionar que esse modo de pensar fornece a caricatura de liberalismo que os antiliberais adoram.
Quando você não pode ser contrariado, tem que poder fazer tudo o que quiser, a sua vontade vale mais do que o direito dos outros e não reconhece autoridade, o nome disso é adolescência revoltada. Liberalismo é outra coisa. O liberalismo foi inventado para enfrentar o absolutismo e o obscurantismo, garantindo que, na vida em sociedade, as liberdades e os direitos não fossem esmagados. Nada a ver com esse “liberalismo” que parece ter sido imaginado por adolescentes para nunca mais precisarem tomar banho, obedecer a regras, ir à escola, sair do quarto ou, finalmente, vacinar-se.
Aliás, sujeitos que se dizem liberais e são companheiros de cama dos dois grandes inimigos do liberalismo, que são o autoritarismo e o obscurantismo bolsonarista, fazem de si mesmo uma piada. E usar um argumento baseado na defesa da liberdade para servir descaradamente aos interesses da sua seita política, e contra o interesse comum da sociedade, parece-me das coisas mais intelectualmente desonestas que temos visto. Ainda mais nesse momento.
O cara que se sente “liberal” por defender a liberdade de alguém não tomar vacina contra a Covid-19 é só um idiota mesmo. E um idiota perigoso. Não importa se ele for o presidente da República ou um comentarista do YouTube.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)