O apocalipse segundo Jim Morrison
.
“Eu sou aquele que, para ser, deve fustigar o que me é inato”, escreveu o escritor francês Antonin Artaud sobre a tarefa do artista moderno de penetrar dolorosamente nas camadas mais profundas de sua subjetividade, libertando-se das determinações exteriores e fazendo do próprio corpo um altar em que o espírito – no que este tem de abstrato e pretensamente universal – é imolado em benefício de uma escritura incandescente e intransferível. O autor de O teatro e seu duplo formulava assim uma das palavras de ordem de um projeto que remontava às aspirações ao sublime dos românticos (Schiller, Blake, Wordsworth, Keats), às epifanias grotescas de Baudelaire e às estadias infernais de Rimbaud, desembocando no credo libertário dos surrealistas e, mais tarde, na anarquia alucinógena da geração beat.
Por seu vigor e longevidade, esse programa estético-existencial estaria destinado a resistir até mesmo a um mundo dominado pelas formas mais sutis de alienação e determinação: o mundo da indústria cultural e de sua “dessublimação repressiva”, segundo a expressão cunhada por Marcuse para designar essa engrenagem perversa em que o gozo passa a ser melhor controlado e docilizado na medida em que é intensificado por uma mercantilização que esteriliza seu fluxo outrora desordenado, caótico e, por isso mesmo, subversivo.
Obviamente, os mártires dessa resistência teriam de ser aqueles artistas que conseguiram estar no centro da civilização do espetáculo, utilizando os instrumentos da comunicação de massa para inocular, no coração daquilo que nos aliena, uma esperança de transcendência – ao preço da própria lucidez e da própria vida. E, dentre esses artistas, nenhum outro encarnou melhor o mito trágico do herói da contracultura do que Jim Morrison, o poeta, compositor e líder da banda de The Doors, que morreu em Paris há exatamente trinta anos, no dia 3 de julho.
O roqueiro que incendiou a cena pop dos anos 60 foi a personagem arquetípica de uma geração que reagiu violentamente ao clima asfixiante da sociedade norte-americana do auge da guerra fria e que buscou na literatura, no cinema, na música e nas drogas uma experiência de ultrapassagem, de rejeição do senso comum da classe média. Filho de um oficial da marinha, James Douglas Morrison nasceu em 8 de dezembro de 1943, em Melbourne (Flórida), mas fixou-se na Califórnia depois de vários anos de peregrinação da família por diversas cidades dos EUA. Contra a vontade do pai, com quem sempre manteve uma relacionamento tenso (a ponto de declarar em entrevistas que era órfão, embora o capitão Steve tenha sobrevivido ao filho), Jim cursou a Escola de Cinema da Universidade da Califórnia (UCLA), onde conheceu Francis Ford Coppola – que muitos anos depois, ao dirigir Apocalypse now (1979), prestaria uma homenagem ao amigo, incluindo na trilha sonora do filme a canção “The end”, clássico dos Doors que foi uma espécie de metáfora musical do inferno da Guerra do Vietnã transposto para a tela pelo cineasta de O poderoso chefão.
No Natal de 1964, Morrison viu os pais pela última vez, pouco antes de o capitão Steve se mudar com sua mãe para Londres, onde serviu nas Forças Navais dos EUA na Europa. Em 1965, Jim abandonou a UCLA depois da recusa, pelos organizadores de uma mostra destinada a avaliar o trabalho dos estudantes, de um filme experimental que ele havia produzido.
A ruptura radical com o passado, no entanto, deu lugar a laços muito mais viscerais. Na Escola de Cinema, ele conhecera Ray Manzarek, com quem passou a conviver em Venice Beach – pequena cidade litorânea perto de Los Angeles habitada por artistas movidos a LSD e que começavam a lançar as bases das comunidades hippies. Morrison mostrou alguns de seus poemas a Manzarek (que era tecladista da banda Rick and the Ravens) e logo surgiu a ideia de formar um conjunto, ao qual se juntariam o guitarrista Robby Krieger e o baterista John Densmore.
Iniciava-se então a vertiginosa trajetória da banda The Doors, com apresentações no clube Whiskey a Go Go, de Los Angeles, em que Morrison aparecia no palco como uma espécie de xamã entoando as letras de “Moonlight drive” e “Break on through”, músicas que soavam como uma convocação para novos estados de consciência e percepção. Não era outra, aliás, a inspiração para o nome do grupo – uma referência explícita ao livro As portas da percepção, de Aldous Huxley, o aristocrático profeta das experiências com drogas, que por sua vez havia retirado esse título de uma célebre frase do poeta William Blake: If the doors of perception were cleansed every thing would appear to man as it is, infinite (“Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo se mostraria ao homem tal como é, infinito”, segundo a tradução de José Arantes em O matrimônio do céu e do inferno, editora Iluminuras).
Obstinado na ideia de Blake segundo a qual “a estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria”, Jim Morrison imprimiu à curta história dos Doors as colorações de uma viagem de purificação. Purificação que equivalia, objetivamente, ao transe provocado pelo ácido lisérgico, à ostentação pública de uma sexualidade transgressiva e à conspurcação de todos os valores de uma sociedade que enclausura os sentidos e encarcera os praticantes de rituais pagãos. Entre Light my fire (single que ficou 40 semanas na lista dos discos mais vendidos dos EUA em 1967) e L.A. woman (álbum de 1971 que também atingiu o topo da parada), Jim Morrison seria detido duas vezes pela polícia norte-americana por causa de sua conduta no palco. Em 1967, durante um concerto em New Haven, foi preso por inicitar o público contra as autoridades depois de denunciar que havia sido agredido nos bastidores do show por um policial que o flagrara com uma fã. Posteriormente, em 1969, Morrison foi indiciado por conduta indecente num concerto em Miami em que se apresentara bêbado, simulando atos sexuais e (segundo o jargão policial) assumindo uma postura “indecente e profana”.
Esse comportamento também se estendia a seu relacionamento com Pamela Courson, verdadeiro “matrimônio do céu e do inferno” que durou até sua morte – sendo interrompido mais seriamente apenas pelo affair que Morrison manteve com Patricia Kennealy, editora da revista Jazz and Pop que ele conheceu em 1969 (durante entrevista no Plaza Hotel de New York City) e com quem se “casaria” num ritual pagão (Patricia se dizia adepta da bruxaria e até sua morte reivindicava a validade da cerimônia e o título de Mrs. Morrison).
Em março de 1971, pouco depois de terminar a gravação do álbum L.A. woman, Morrison decidiu romper temporariamente sua parceria com os Doors e se mudou para Paris. Foi um breve período de renascimento de Jim. No último ano, ele havia engordado exageradamente, deixara crescer uma barba que lhe dava a aparência de guru underground, vivia entre crises de alcoolismo e o consumo exagerado de cocaína: era como se quisesse sepultar em praça pública sua imagem de deus do rock, aquela aura mercantil de sex symbol eternizada em sua beleza diabólica pela lente de Joel Brodsky.
Ao viajar para a França, porém, ele parecia haver recuperado o frescor dos primeiros anos. Rosto escanhoado, mais magro, Jim Morrison queria voltar à fonte de seus primeiros poemas (Baudelaire, Rimbaud, Céline) e ser reconhecido como escritor. Mas seu idílio na Rive Gauche durou pouco. Na noite de 2 de julho, após ir ao cinema, Jim voltou com Pamela para seu apartamento e se deitou-se. Queixando- se de dores peito, levantou da cama e decidiu tomar um banho. Na manhã do dia seguinte, Pamela encontrou Jim Morrison morto na banheira de seu apartamento parisiense. Até hoje não se sabe se ele morreu de um ataque cardíaco provocado por anos de excesso ou se tomou uma overdose (especula-se que ele teria confundido heroína com cocaína). O fato é que a morte de Jim Morrison parecia confirmar o destino trágico dos ícones da contracultura. No ano anterior, o guitarrista Jimi Hendrix e a cantora Janis Joplin haviam morrido em circunstâncias semelhantes. Ambos tinham a mesma idade que Morrison: 27 anos.
Tais coincidências acabaram por reforçar o apelo mítico desses jovens que vivem intensamente e agonizam precocemente (trilha perseguida por Pamela, que morreria de overdose de heroína em seu apartamento em Hollywood, no dia 25 de abril de 1974). Sepultado no cemitério Père Lachaise, em Paris, o túmulo de Jim Morrison é até hoje um lugar de peregrinação para fãs, o mais visitado de uma necrópole que abriga ilustres representantes da alta cultura como Molière, Balzac, Chopin, Oscar Wilde e Marcel Proust.
Diante dessas curiosidades jornalísticas, é muito difícil avaliar o lugar exato de Morrison na cultura contemporânea. Ele seria apenas uma vítima talentosa da indústria do estrelato ou um poeta genial escondido sob a pele do astro do rock? O autor de canções datadas da geração Woodstock (festival do qual, aliás, os Doors não participaram) ou um performer cuja radiante beleza era mais um elemento nas celebrações dionisíacas que fizeram da banda o emblema de uma renovação espiritual (logo sepultada pela era de conformismo político e de anódino ecletismo estético que perdura até nossos dias)?
Os adeptos de uma valorização propriamente literária de Morrison têm procurado traçar paralelos entre suas letras e poemas e a obra de alguns escritores – tarefa facilitada pelo próprio compositor, que deixou várias indicações de suas preferências poéticas. O caso mais óbvio é Blake, cujos ecos se fazem sentir nos versos There are things known/ And there are things unknown/ And in between are the doors – espécie de palavra de ordem que justifica a filiação da banda ao romantismo visionário do poeta inglês. Outro caso explícito de citação são os versos da canção “End of the night” (Take the highway to the end of the night/ take a journey to the bright midnight/ Realms of bliss/ Realms of light/ Some are born to sweet delight/ Some are born to the endless night), que remetem à leitura que o jovem Jim Morrison fez do romance Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline (escritor francês que encontrou na mais profunda abjeção humana uma forma de iluminação, de reconhecimento das sórdidas verdades que habitam nosso bas fond existencial).
Aliás, é possível detectar na curta trajetória de Morrison uma linha direta entre suas leituras de juventude e as letras que ele cantava no auge do sucesso dos Doors. Não me refiro apenas às leituras dos beatniks Ferlinghetti, Kerouac ou Corso, que foram seu catecismo da rebeldia, mas sobretudo àqueles escritores que fizeram da própria figura do poeta um ideal de conduta desviante, encarnando no corpo e na escrita um mundo de possíveis em meio às frias impossibilidades desse mundo. Se “o poeta é o sacerdote do invisível”, como escreveu Wallace Stevens (cito o verso a partir do livro Daqui ninguém sai vivo, biografia de Morrison escrita por Jerry Hopkins e Danny Sugerman e da qual retirei a maior parte das informações deste texto), Morrison quis ser o oficiante de sua própria invisibilidade, de sua desaparição, da lenta submersão de sua alma no “Palácio do exílio” (poema magistralmente recitado por ele na seção “The celebration of the lizard”, do disco In concert – que de certa forma recapitula seu mergulho no abismo dos paraísos artificiais e seu posterior retorno à noite primitiva de uma sabedoria aberta ao encanto dos acontecimentos).
Essa proximidade entre Morrison e poetas malditos como Baudelaire e Dylan Thomas foi retomada recentemente num estudo de Wallace Fowlie, professor de literatura francesa que no livro Rimbaud and Jim Morrison: The rebel as poet (Duke University Press) estabelece paralelos biográficos entre o rebelde poeta francês que deixou de escrever aos 20 anos e o pop star cuja obra poética foi interrompida aos 27. Entretanto, uma simples leitura de Os mestres ou de As criaturas novas mostra que a poesia aforística de Morrison atinge alguns poucos momentos de intensidade e originalidade. A verdadeira poesia de Morrison está em letras de músicas como “Not to touch the earth” ou “The end”. Ou, melhor ainda, a poesia de Morrison se torna absolutamente irresistível quando vem associada à sua voz e à sua performance, ao mesmo tempo vigorosa e cansada, sensual e indiferente, em gravações que são verdadeiros festins do Rei Lagarto (uma das imagens recorrentes de seu xamanismo).
Pois se o poeta Jim Morrison foi apenas um epígono sedutor de Blake, Rimbaud e Dylan Thomas, o cantor Jim Morrison, em compensação, foi bem além do glamour da cena pop. Como líder da banda The Doors, ele conseguiu expor seus dilaceramentos, os nossos dilaceramentos, a desfasagem entre a altitude de nossos sonhos, a opacidade de um mundo que exige que sonhemos e a crueldade com que esse mundo manipula aqueles sonhos, obrigando-nos a percorrer a estrada da dissolução, a penetrar na terra da catástrofe – para ensinamento dos homens. Nesse sentido, a obra de Jim Morrison possui a teatralidade absoluta exigida por Artaud: ela é o conjunto formado pela aspiração ao sublime e pelas consequências sofridas pelo corpo e pela mente de quem ousou materializar essa ideia de transcendência. E, por isso, a melhor obra poética de Jim Morrison foi sua vida.
Manuel da Costa Pinto é jornalista, autor de Paisagens Interiores (B4, 2012) e Albert Camus – um elogio do ensaio (Ateliê Editorial, 2020). É apresentador do programa Entrelinhas, da TV Cultura.
Texto originalmente publicado na Cult 48, em julho de 2001