O antropólogo dos quadrinhos

O antropólogo dos quadrinhos

Marília Kodic

Regra número 1: nunca diga à sua família o que vai fazer até que esteja prestes a entrar em um avião”, aconselha Joe Sacco, que, aos 31 anos, embarcava sozinho para um Oriente Médio tomado por conflitos entre palestinos e israelenses, ignorando os protestos dos pais e amigos, para se tornar um dos mais famosos jornalistas de quadrinhos da atualidade.

Foi em 1991, após passar uma década sustentando-se com trabalhos em pequenas editoras e fazendo desenhos de pôsteres para bandas de rock alternativo, como Yo La Tengo e Mudhoney (“queria algo em hard news com que pudesse realmente fazer diferença, e não achei”, diz o cartunista formado em jornalismo  em 1981 pela Universidade de Oregon, EUA), que a veia literária surgiu.

Diferentemente de quando era adolescente, época em que absorvia as “informações superficiais” disparadas pelos noticiários norte-americanos, decidiu partir em busca do outro lado da história, aquilo que os jornais não mostravam.

“Quase por osmose, o que se recebia da mídia era: os palestinos são terroristas. Então, decidi ver como as pessoas viviam na Palestina e pensei: ‘Bem, não devia ir só como turista, posso escrever e desenhar sobre isso’. De repente, virou um projeto jornalístico”, lembra Sacco em entrevista à CULT durante a última edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).

Infiltrado

Sem recursos, dividindo quartos em albergues com cinco ou seis pessoas “que roncavam o tempo inteiro”, passava o dia colhendo depoimentos e fotos.

“A falta de dinheiro te leva a conhecer gente nova, dá uma percepção de como as pessoas reais vivem. Você não se isola, pertence”, acredita Sacco. E ele também assinala a hospitalidade estrangeira: “As pessoas te convidam para entrar em casa. Elas ficam felizes com seu interesse por suas vidas”.

Para Sacco, 50, as experiências antropológicas são o aspecto mais interessante de retratar.

Em Notas sobre Gaza (Companhia das Letras), por exemplo, cita o abatimento de um boi. “Apesar de ficar um pouco enjoado assistindo àquilo, percebi que era possível usar os quadrinhos para mostrar os costumes das pessoas, e aquilo foi uma alegria”.

Alegria, porém, não é a palavra que melhor traduz as cenas que presenciou. Com experiências que incluem analisar a posição de corpos jogados no chão, o segredo, conta, é manter um olhar clínico:

“Quando você está lá, precisa ter o coração duro; você está atrás de histórias, e isso o impede de se envolver profundamente; precisa encarar aquilo de forma profissional”.

Após passar cerca de quatro anos entre o Oriente Médio, viajando por Palestina e Bósnia, e os Estados Unidos, onde mora desde os 12 anos, materializou a experiência em dois de seus livros mais conhecidos: Palestina, publicado originalmente em 1996, e Área de Segurança – Gorazde, publicado em 2000, ambos lançados no Brasil pela Conrad.

Seu livro mais recente, Notas sobre Gaza, lançado em 2009, também é fruto da experiência.

Longe da guerra

“É em casa que o bicho pega”, fala, num tom meio sério, meio debochado, e explica: “É o momento de realmente pensar no que aquilo tudo significa. Você precisa habitar as experiências uma segunda vez, só que mais profundamente”.

O local de trabalho do quadrinista, nascido em Malta, é nos fundos de uma casa em Portland, Oregon, onde mora há oito anos com a namorada, Amalie.

“Estilo rancho, de tijolos, construída em 1959, a maior em que já morei. Tem até biblioteca, que era uma das minhas metas de vida”, diz, orgulhoso, sobre as prateleiras que carregam desde Hunter Thompson e George Orwell a Dostoiévski e Tolstói.

Além da literatura, a música também o acompanha – para cada fase de produção, há um som diferente: durante a elaboração da escrita, silêncio total (“Preciso estar lá de corpo e alma”); depois, ao fazer os esboços, música instrumental (“O som está lá, mas não tira a minha atenção”); e, por último, ao preencher e finalizar os desenhos, jazz, blues, country e krautrock (rock alemão experimental do final dos anos 1960).

Num ritmo de uma página a cada dois dias e meio, tendo cada dia entre oito e 12 horas de trabalho – cumpridas após tomar café da manhã com a namorada e passear com o cachorro –, chega a levar até sete anos para finalizar um livro.

“Com o desenho, posso calcular o tempo. Mas, com o roteiro, nunca sei. Uma frase pode levar dois minutos ou duas semanas”, diz.

Novos meios

Meticuloso com sua escrita, Sacco diz ser uma ilusão acreditar que os quadrinhos sejam mais fáceis de ler do que outras plataformas.

“São atraentes por causa das imagens, pois somos criaturas visuais. Mas você pode colocar informações tão complexas em uma HQ quanto em um livro ou documentário, e é por isso que é algo subversivo: as pessoas acham que é simples de ler”, diz.

Apesar disso, acredita que a percepção sobre as HQs vem melhorando e ressalta que, nos Estados Unidos, os quadrinhos são hoje o único gênero em ascensão no mercado editorial.

“Quem ocupa atualmente os cargos mais altos nas editoras tem a mente mais aberta do que as pessoas de antigamente. Acho que Maus (Companhia das Letras), de Art Spiegelman, teve um grande impacto nesse sentido, pois mostrava um assunto extremamente sério em forma de quadrinhos”.

Na obra de Spiegelman, de quem é amigo e admirador, nazistas e judeus são retratados como gatos e ratos, respectivamente.

A maior influência em seu trabalho, contudo, vem do ilustrador Robert Crumb, que publicou desenhos em revistas como a New Yorker e fundou o Zap Comix, um dos mais conhecidos gibis underground – ele emergiu como parte da contracultura dos anos 1960 e acabou em 2005.

“Tudo o que [Crumb] desenha tem vida própria, tem alma. Você sente que aquilo está vivo de algum modo, e isso é realmente inspirador”, diz Sacco.

Em relação à internet, é cético. “Ela não pode produzir um objeto de arte, com uma capa legal, papel bonito. Acho que o homem quer algo palpável, tátil. Por mais que a web seja ótima, você está sentado em frente a um computador o dia todo. O seu entretenimento também vai ser numa tela?”, questiona.

Pós-tudo

“Quanto mais velho fico, mais quero me afastar do trabalho quando o termino”, confessa, apesar de não conseguir fazê-lo.

“Ao finalizar um livro, seguem-se cerca de três meses de pós-produção, em que tenho de lidar com o editor, falar sobre coisas como o tipo de papel e, depois, promover o livro. Você quer esquecer dele, mas ele te persegue”, diz.

Persistente em temas humanitários, Sacco tratará em sua próxima HQ de lugares pobres e abandonados da América do Norte, como a Virgínia Ocidental, onde, conta, montanhas são derrubadas para a extração de carvão.

Mas depois pretende seguir em nova direção. “Quero fazer algo light, que seja também sombrio, que seja também profundo, mas que também seja leve. Algo que nunca fiz”.

Indagado se há algum tema no Brasil que desperte seu interesse, dá uma ideia sobre o que pode ser o novo trabalho:

“Estou interessado em tribos isoladas e vida primitiva. De qualquer modo, isso é parte de um projeto maior que é ainda apenas um pensamento”, adianta, em tom misterioso.

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Novembro

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