Notícias de outras ilhas: Marcelo Ariel

Notícias de outras ilhas: Marcelo Ariel
O poeta, crítico e ensaísta Marcelo Ariel (Foto: Maria Helena Tavares)

 

Marcelo Ariel, 52, é poeta, crítico e ensaísta. Em sua ilha de quarentena, está lendo a Ilíada traduzida por Odorico Mendes (Ateliê) e O homem sem qualidades, de Robert Musil (Nova Fronteira). Depois, pretende enfrentar A graça infinita, de David Foster-Wallace (Companhia das Letras).

Além desses autores, Ariel também está lendo Maria Gabriela Llansol e Emily Brönte, cujos poemas indica na abertura da seção “Notícias de outras ilhas”, que passa a ser publicada diariamente no site da Cult durante o período de quarentena, com curadoria de Tarso de Melo. A ideia é que poetas, escritores, críticos, editores e tradutores façam deste um espaço para sugerir leituras e outras atividades capazes de abrandar o peso do noticiário.

Autor de Me enterrem com a minha ar 15 (Dulcineia Catadora, 2003), Tratado dos anjos afogados (Letra Selvagem, 2007), entre outros, Ariel diz que agora é uma boa oportunidade para ver ou rever Cenas de um casamento, de Ingmar Bergman, Sátántangó, de Bela Tarr e Berlin Alexanderplatz, de Rainer Werner Fassbinder, além de ouvir todos os discos de Miles Davis, João Gilberto e Jorge Ben.

Abaixo, os dois poemas de Gabriela Llansol e de Emily Brönte, respectivamente, escolhidos e comentados por Marcelo Ariel.

 

Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti
até que a dor alegre recomece.

***

Se as sete notas das sete da manhã fossem uma
Figura, e os sons da rua sua serva, seria possível
Encontrar a relação que existe por acústica
Entre uma borboleta e uma borboleta protegendo
Em vão sua vida e cor. Não há nada de estranho
Nessa relação figural. Por exemplo, Pita
(E é a sua primeira vez) pôde sentir num tecido
Branco que chorava manso a efectiva resistência
Às lágrimas que a habita em fúria.

 

Maria Gabriela Llansol é uma autora portuguesa que em seu trabalho praticou uma profunda mestiçagem entre os gêneros, levando-os a um tensionamento que os dobra até chegar a uma grande transubstanciação onde ensaio, romance, conto e memorialística de fundo expressionista se fundem com uma visão poemática ou autopoiética do viver. Transfigurando a solidão em diversas camadas de outridade, convertendo a leitura em exercício de alteridade dialógica, ela inverteu em uma chave de delicado paroxismo a solução criada por Ray Bradbury e Truffaut em Fahrenheit 451, extraindo dos livros as pessoas recriadas como figuras de imanência. Numa lição de presentificação internas do outro-outra que considero essenciais para nosso tempo de isolamento e por sua capacidade de recriação do mundo pela interioridade, é uma autora imprescindível. Dela recomendo os livros Um beijo dado mais tarde (7Letras) e Um falcão no punho – diário 1 (Autêntica).


Eu não tenho a alma covarde

Emily Brönte

Eu não tenho a alma covarde,
Pois frente aos vendavais, eu nunca tremo:
O Paraíso brilha, arde,
Como a fé, pela qual eu nada temo.

Deus, meu peito Te abrigou.
Deidade poderosa e onipresente!
Vida – que em mim repousou.
Como eu – Vida Imortal – em Ti, potente!

Movem-nos o peito em vão
Mil credos que não são mais do que enganos;
Sem valor, brotos malsãos,
Ou a ociosa espuma do Oceano,

A pôr dúvidas num ente
Pego assim pela Tua infinidade;
Preso tão seguramente
Na firme Rocha da imortalidade!

Com o amor de um grande enleio
Teu espírito o tempo eterno anima,
Para cima e de permeio,
Muda, apoia, dissolve, cria e ensina.

Se a Terra e a lua findassem,
Se não houvesse sóis nem universos,
E se, só, Te abandonassem,
Haveria existência em Ti, por certo.

A Morte não tem lugar,
Nem pode um único átomo abater:
És o Sopro mais o Ser
Nada pode jamais Te exterminar.

***

Solidariedade

Não deves ter desesperança,
Cada estrela incendeia;
O silente orvalho se lança
E o sol tudo clareia.

Não à desesperança, embora
O pranto vá jorrar:
Mas os áureos anos de outrora
No peito hão de ficar.

Todos choram, como se deve,
O ar, qual nós, dá seus ais,
O pesar fica sob a neve,
Vêm folhas outonais,

Que revivem; pelo seu fado
O teu nunca é rompido:
Vai, mesmo que desanimado.

E jamais dolorido!

 

Emily Brönte, a conhecida autora inglesa do extraordinário O morro dos ventos uivantes, foi também uma poderosa poeta. Sua poesia foi lançada no Brasil no livro O vento da noite, eficientemente traduzida por Lúcio Cardoso. Desses dois poemas em questão, prefiro essa versão de Renata Cordeiro, parte dos seis poemas traduzidos para a oitava edição de 2007 dos Cadernos de Literatura em Tradução. 


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