Negra melodia

Negra melodia
Ilustração de Elifas Andreato para o encarte do disco Clementina e convidados, de 1979 (Reprodução)

 

“É Clementina cantando bonito as aventuras de seu povo aflito. É seu Francisco, boné e cachimbo, me ensinando que a luta é mesmo comigo.”
Milton Nascimento e Fernando Brandt,
Raça

 

Com o lançamento de Quelé, a voz da cor: biografia de Clementina de Jesus (Civilização Brasileira), de autoria de Felipe Castro, Janaína Marques, Luana Costa e Raquel Munhoz, uma personagem ímpar de nossa música popular – cujas história pessoal e trajetória artística evocam inúmeras questões sociais e políticas ligadas ao modo cínico como lidamos não somente com a presença negra como também com o protagonismo feminino em nossa cultura – volta à cena. O livro constitui a primeira biografia de Clementina de Jesus da Silva, a neta de escravizados nascida no dia 7 de fevereiro de 1901, na então cidade de Marquês de Valença (hoje, simplesmente, Valença), localizada a cerca de 150 quilômetros da capital do Rio de Janeiro, que iria se lançar como cantora profissional somente aos 63 anos de idade.

A figura de Clementina já havia sido escrutinada com muita seriedade e empenho em Rainha Quelé: Clementina de Jesus, publicação de dimensões modestas que o produtor musical e diretor de teatro Heron Coelho organizou em 2001, no centenário de nascimento da cantora, com textos de Lena Frias, Nei Lopes e Hermínio Bello de Carvalho. Impressa pela Gráfica e Editora Valença, a obra configurou-se como uma honrosa tentativa de compreender a exata dimensão artística da mulher cuja voz representava os “milhões de negros desfeitos no fazimento do Brasil”, de acordo com a acurada definição de Darcy Ribeiro.

Vale citar ainda o livro Clementina, cadê você?, dos pesquisadores Adriana Magalhães Bevilaqua, Idemburgo Frasão Félix, Lia Calabre de Azevedo e Maria Tereza de C. Martins, editado pela LBA em parceria com a Funarte, em 1988. Entretanto, faltava ainda incidir sobre personagem tão fascinante uma lente especificamente biográfica, disposta a passear com a prontidão e o cuidado que a iniciativa exige pelas mais de oito décadas em que viveu a artista. Cumpre notar também que o maior guardião da memória de Clementina é o compositor e produtor musical Hermínio Bello de Carvalho, talvez o mais dileto amigo da cantora (responsável por seu descobrimento, embora ele negue a palavra, no início da década de 1960), cujos depoimentos, como não poderia deixar de ser, são evocados, recorrentemente, no trabalho recém-lançado dos quatro jovens jornalistas.

Em “Sova de beijos em Clementina”, um dos capítulos de Taberna da Glória e outras glórias: mil vidas entre os heróis da música brasileira, Hermínio se recorda do primeiro encontro com a mulher cujo destino iria influenciar decisivamente: “Conheci Clementina de Jesus no dia 15 de agosto de 1963, era festeira assídua das comemorações domingueiras de Nossa Senhora da Glória. Iluminada por suas rendas brancas, a partideira cantava como sempre cantou, de alegria, por necessidade de comunicação. Naquele momento, senti que acabava de acontecer algo importante em minha vida. Perdi-a de vista, só fui revê-la na festa de inauguração da casa de samba de meus afilhados Cartola e Zica. E a partir daí, não mais nos perdemos”.

Pois bem, bastou pouco mais de um ano para que o ex-repórter da Rádio Entrevista (espécie de irmã pobre da Revista do Rádio), poeta (seus dois primeiros livros, Chove azul em teus cabelos, de 1961, e Ária e percussão, de 1962, lograram ótimas críticas tão logo foram lançados) e agitador cultural começasse a escrever seu melhor poema, segundo ele mesmo definiu: “Passei a ensaiá-la em minha casa (raramente cantava com acompanhamento: fazia-o livremente, seu repertório era imenso, mas lembrado fragmentadamente). E na noite de 7 de dezembro de 1964, através do movimento de vanguarda O Menestrel, de música e poesia, que fundei no Teatro Jovem, apresentei-a em concerto fazendo a segunda parte de um recital em que atuava o violonista clássico Turíbio Santos.

A crítica foi, em geral, avassaladora. O severo crítico Andrade Muricy, presidente da Academia Brasileira de Música, classificou-a de extraordinária, e não foram menores os outros elogios”. Tinha início, assim, uma carreira que iria durar pouco mais de duas décadas, nas quais raramente o Brasil acolheu a divindade negra Clementina de Jesus com o mesmo afeto e admiração com os quais acolhe quase sempre sem exceção suas deidades brancas.

A primeira incompreensão a respeito do imenso talento da cantora surgiu na casa da patroa para quem Clementina de Jesus trabalhava como arrumadeira e passadeira no bairro do Grajaú, Rio de Janeiro. A portuguesa Maria da Glória tratava o cantarolar doméstico de sua empregada como um miado de gato, nada mais. E, a despeito de Clementina ter se recordado dos patrões, ainda no início da carreira, como “um casal santo” (“me dão férias todo ano, me deixam sair às 11h, me dão décimo terceiro salário e tudo”), dona Glorinha não aceitou seu pedido de demissão – quando aquele passatempo excêntrico, cantar, passou a ficar sério demais – e ainda fez troça de sua vontade de querer seguir na vida artística.

Conforme se lê em tom de indisfarçada mordacidade na biografia: “No dia seguinte, Quelé não voltou mais para trabalhar e ficou sabendo por outra empregada da casa que os olhos da patroa quase saltaram da órbita ao ler no jornal: ‘Clementina de Jesus, partideira da escola de samba Mangueira, acompanhada por César Faria, dia 7, no Teatro Jovem’”.

Por incrível que possa parecer, a mesma incompreensão viria também da classe artística e do público estudantil. Caetano Veloso se lembra, em Verdade tropical, de dois momentos polêmicos envolvendo o nome de Clementina. O primeiro deles diz respeito à discussão que o compositor baiano travou com o dramaturgo e diretor Augusto Boal em 1965, ano do show Rosa de ouro, que iria solidificar o talento da cantora lançada “oficialmente” havia alguns meses. Segundo Caetano, tratava-se para Boal apenas de um show “folclórico” – classificação contra a qual o compositor e cantor tropicalista argumentaria nas memórias que publicou pouco mais de três décadas depois: “… me pareceu que descartar um espetáculo como aquele seria jogar fora uma oportunidade rara de ver exposto claramente o que sugerimos como beleza possível para nós.

E também que o nacionalismo dos intelectuais de esquerda, sendo uma mera reação ao imperialismo norte-americano, pouco ou nada tinha a ver com gostar das coisas do Brasil ou – o que mais me interessava – com propor, a partir do nosso jeito próprio, soluções originais para os problemas do homem e do mundo. A solução única já era conhecida e chegara aqui pronta: alcançar o socialismo. E para isso todo truque era bom. Qualquer interesse em refinar-se a sensibilidade – fosse no aprofundamento do contato com nossas formas populares tradicionais, fosse na atitude vanguardista experimental – era considerado um desvio perigoso e irresponsável”.

O outro episódio, ocorrido em 1967, parece de uma atualidade perturbadora. Caetano se lembra de estar assistindo, no Teatro Paramount de São Paulo, à exibição de Frente Ampla da Música Popular Brasileira, na TV Record, comandado por Geraldo Vandré, quando Clementina de Jesus, convidada especialmente pelo compositor de “Disparada” a participar do programa, passou a ser vaiada e chamada de “macaca”. “Pois bem, o público do Teatro Paramount, jovem e paulista, embora majoritariamente estudantil e nacionalista de esquerda, não tinha ideia de quem fosse Clementina, nem mesmo estava preparado para ouvir o samba em estado tão cru e autêntico”, declararia o compositor.

O fato é que, mesmo recebendo inúmeras homenagens dentro e fora do Brasil, Clementina de Jesus nunca foi reconhecida como a artista talentosíssima que era, cuja memória musical apresentou ao Brasil branco da bossa nova e da MPB o Brasil negro dos jongos, curimas e partidos. Em estado bruto, sem falsas mediações. A esse respeito, vale evocar o depoimento do músico e professor de semiótica Luiz Tatit, que serve de epígrafe a um dos capítulos de Quelé, a voz da cor: “Clementina de Jesus chega ao grande público depois da consolidação da bossa nova, como a lembrar que o refinamento da canção brasileira guardava em si a crueza da dicção negra forjada nos fundos das casas das Tias que chegaram ao Rio no início do século 20”.

É bem verdade que nunca faltou da crítica especializada a devida prontidão crítica para compreender a grande contribuição prestada pela artista. Enquanto o pesquisador Jairo Severiano declara que “com seu canto vigoroso, rascante, inusitadamente grave, suas cantigas primitivas, impregnadas de negritude, alguns em dialeto africano, Clementina de Jesus é a prova cabal da presença da África em nossa música popular”, o historiador Ary Vasconcelos assevera que ela tinha para a música popular brasileira “uma importância que presume corresponder, na Antropologia, a do achado de um elo perdido”.

Entretanto, não foram raras as vezes em que a sociedade brasileira simplesmente deu as costas a uma de suas mães ancestrais. Conforme o livro reconta em detalhes preciosos, quando Darcy Ribeiro, então secretário de Cultura do Rio, quis render, em 1983, uma homenagem à Clementina, organizando um show no Teatro Municipal em que ela cantaria acompanhada de Gilberto Gil, Elizeth Cardoso, Beth Carvalho, João Nogueira e Paulinho da Viola, não faltaram críticas à iniciativa, com a alegação de que o Municipal era a “sede da nata” da música brasileira. Parece igualmente inacreditável que na ocasião o maestro Henrique Morelenbaum tenha declarado ao Jornal do Brasil que seria preferível que o show ocorresse nas escadarias do Teatro, onde a artista “se sentiria muito melhor”.

Pouco depois, ninguém espernearia quando Roberto Carlos comemorou 25 anos de carreira no mesmo palco – o que motivou a publicação de uma nota apócrifa no mesmo Jornal do Brasil: “… quando Clementina de Jesus, rainha do jongo, foi ali homenageada há um ano e meio, o teatro quase veio abaixo, tantas as recriminações sofridas pelos organizadores da homenagem. Onde está a diferença? Seria entre o jongo e o iê-iê-iê?”.

Quem sabe a indústria fonográfica, embalada pelo lançamento da biografia, não se disponha a retirar de seus arquivos os cinco preciosos discos individuais que a cantora gravou (somente cinco, isso mesmo) – Clementina de Jesus, 1966; Clementina, cadê você?, 1970; Marinheiro só, 1973; Clementina de Jesus, 1976; Clementina e convidados, 1979 – e relançá-los, acompanhados dos projetos coletivos que renderam seis LPs a sua discografia (que vão do primeiro volume de Rosa de ouro, em 1965, a O canto dos escravos, de 1982) e de uma coletânea que reúna as vinte participações especiais que ela deixou registrada em discos de outros artistas. Vale notar que em 2000 a Petrobras editou nove desses trabalhos em uma caixa especial, que lamentavelmente não chegou ao grande público, visto tratar-se de um brinde especial da empresa distribuído aos “parceiros e clientes da BR”, como a empresa apresentou a iniciativa.

Concebido inicialmente como um trabalho de conclusão de curso em jornalismo da Universidade Metodista de São Paulo, Quelé, a voz da cor: biografia de Clementina de Jesus prova que há muitos bons jornalistas no país dispostos a não se conformar com o clima de determinismo sombrio que paira sobre o panorama cultural brasileiro. Que insiste na ideia de que “o Brasil nunca foi ao Brasil”, segundo a fina ironia de Aldir Blanc. Felipe Castro, Janaína Marques, Luana Costa e Raquel Munhoz não somente adentraram o Brasil, como também saíram na África, repercutindo pelo caminho o fenômeno Mãe Quelé, síntese do nosso próprio processo musical, de acordo com a definição de Hermínio Bello de Carvalho.

Quelé, a voz da cor: Biografia de Clementina de Jesus
Felipe Castro, Janaína Marquesini,
Luana Costa e Raquel Munhoz
Civilização Brasileira
384 págs. • R$ 49,90

 

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