Copo vazio: uma conversa com a psiquiatra e escritora Natalia Timerman

Copo vazio: uma conversa com a psiquiatra e escritora Natalia Timerman
A médica psiquiatra, psicoterapeuta e escritora Natalia Timerman, que lança 'Copo vazio' pela todavia (Foto: Renato Parada)

 

Mulheres abandonadas. Desde sempre, a literatura é permeada de histórias trágicas de figuras fascinantes, como Medéia e Dido, que se desfazem diante do abandono masculino. Emma Bovary e Anna Kariênina, personagens inesquecíveis, também sucumbem. A mesma Simone de Beauvoir que escreveu O segundo sexo publicou A mulher desiludida, antologia de contos sobre personagens despedaçadas, uma delas por essa mesma via.

No século 21, Elena Ferrante atualiza a tradição, criando personagens que definham ou enlouquecem quando dispensadas — é o caso de Olga, em Dias de abandono, que se vê confrontada com uma nova questão: como é que uma mulher padece “de amor” nos anos 2000? A própria ideia de abandono já não soa anacrônica em nossos dias?

Agora é a vez de Natalia Timerman e seu Copo vazio. O romance conta a história de Mirela, uma mulher inteligente e bem sucedida, que acaba submergida em afetos perturbadores quando se apaixona por Pedro. Primeiro, experimenta aquilo que Clarice Lispector chamou de “felicidade insuportável”. Daí para a dúvida e o desalento é um passo.

Copo vazio perscruta a vulnerabilidade de sua protagonista sem constrangimentos. Há algo de ancestral, talvez atemporal, no sofrimento de Mirela, que ecoa a dor de todas essas mulheres. Mas há também elementos contemporâneos: a forma de vida nas grandes cidades e a presença das redes sociais são questões que acentuam os dilemas. Mirela tem emprego, apartamento, família e amigos, mas parece ser bastante solitária. Quando conhece Pedro, ela se preenche de energia e entusiasmo, e fica obcecada não apenas por ele, mas também por essa versão de si mesma. O que fazer quando ele desaparece de repente, sem explicações?

Depois de publicar contos, poemas e ensaios, Natalia Timerman comprova a versatilidade de sua escrita num mergulho de fôlego no mundo psíquico de sua protagonista. Nessas páginas, vamos às profundezas de suas carências e projeções, de seus temores mais íntimos, uma descida ao inferno narrada de forma vertiginosa.

Aqui, converso com ela sobre sua trajetória como escritora, a transição entre diferentes atividades — médica psiquiatra, psicoterapeuta com mestrado em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo, doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP, além de mãe de duas crianças pequenas — e entre diferentes gêneros literários.

Cult – Você estreou na literatura com um livro de não-ficção, Desterros (Elefante, 2017). Depois, publicou uma antologia de contos, Rachaduras (Quelônio, 2019). Nesse meio tempo, também publicou poemas, ensaios, resenhas e entrevistas em diferentes veículos. Agora, é a vez da romancista com Copo vazio. Como é para você a experiência de transitar entre tantos gêneros literários?

Natalia Timerman – Transitar entre diferentes gêneros é poder estar atenta, a cada vez, à melhor forma de dizer, apreender ou descobrir algo. Não é exatamente uma escolha, mas a possibilidade de uma aproximação específica a partir do que a pede. Desterros não poderia ser ficcional, porque se ocupa de pessoas, singulares, que vivem na prisão e me contaram suas histórias verdadeiras; é um livro que precisava ser explicitamente enlaçado à realidade para fazer trânsito entre o que os muros daquele hospital-prisão tentam esconder e o que supostamente protegem. Cada conto de Rachaduras, por sua vez, é uma tentativa de, com palavras, chegar ou me deixar levar ao lugar de uma ideia, imagem, sensação. E assim com os diferentes gêneros, embora a sensação seja a mesma: a de escrever. O processo é diferente para um poema, um ensaio, a maneira como o texto se organiza também, mas a sensação inigualável de estar escrevendo e, logo após, ter escrito, é única. Uma sensação de chegada ― que nem sempre acontece, mas que busco quando sento diante de uma página em branco, provida de anotações em cadernos ou em lugar nenhum.

Além da transição entre diferentes gêneros literários, você também transita bem entre diferentes atividades: é médica psiquiatra, psicoterapeuta, escritora e pesquisadora de literatura. Você pode contar um pouco da sua trajetória e como consegue conciliar tantas tarefas assim?

É uma trajetória de insuficiência, em muitos sentidos. Primeiro, porque cada uma dessas atividades, mesmo que essencial, é insuficiente; segundo, porque eu sou insuficiente para cada uma delas, o que significa a constante sensação de culpa por não me dedicar como deveria, gostaria ou poderia aos meus filhos, aos livros, à psiquiatria. E, no entanto, elas se amparam, ou me amparam uma das outras. E é também uma trajetória de privilégio, num país como o nosso. Tenho consciência de que oportunidades que tantas outras pessoas não tiveram, e de novo chegamos à culpa, ainda não reparadora o suficiente, com certeza. Mas a verdade é que pude escolher, o que poucos podem. Os pesos sobre mim foram outros. Fui a criança que passava recreios na biblioteca e queria ser escritora e ler todos os livros do mundo, mas cursei medicina porque meu pai era médico e eu achava que devia. Hoje, me vejo conciliada com essa história, justamente por meio do meu primeiro livro, para onde convergem a medicina e a literatura, e sigo aprendendo que são olhares que se alimentam mutuamente, e transbordam e se encontram de outros jeitos, por exemplo na pesquisa. A clínica é um raciocínio que nos ensina a perguntar, e é bom poder perguntar para a literatura, que não me responde nada e me responde tudo.

Você escreve e pesquisa literatura contemporânea. No seu doutorado, está fazendo um trabalho sobre dois grandes nomes do romance do nosso tempo: Karl Ove Knausgård e Elena Ferrante. Acho que muita gente adoraria saber um pouco mais do seu tema e de como você pensar nessa aproximação ou nesse contraste e como é estar nos dois lados do processo: um como autora, outro como leitora-pesquisadora.

Enquanto leio, vou anotando na última página, aquela quase em branco, algumas ideias que me vêm e quero elaborar e desenvolver, e talvez fiquem ali no final do livro, mais perto do mundo, esperando para serem levadas e transformadas em texto de novo. Na página anterior à contracapa de Frantumaglia, de Elena Ferrante, rabisquei: “Knausgård X Ferrante na questão da exposição: a segunda é um filme não revelado, o primeiro é um filme queimado por excesso de exposição. Por mecanismos diferentes, o real escapa.” Esse foi o lampejo inicial da minha pesquisa, da minha vontade de me debruçar sobre essa italiana e esse norueguês cujas séries de romances me arrebataram, e eu achava que podia ser um resumo do que iria estudar, ou até meu ponto de chegada. Mas percebi que a pergunta se ampliava na indagação do que é o real, a ficção, um/a autor/a; o que é autobiografia, a chamada autoficção, ou simplesmente o que é escrever hoje, na chamada pós-modernidade, e é por aí que não tenho como não ir. Estudar literatura me proporciona a sensação de chegada que já mencionei, de enfim estar em casa, tanto quanto a escrita. Estou aprendendo como ser crítica assim como aprendo a escrever a cada texto, a cada livro, e um ensaio, resenha ou mesmo um texto acadêmico podem “acontecer” ou não tanto quanto um texto literário. Esse “acontecer”, que tem a ver com a verdade literária, é algo como uma abertura e um fechamento ― ou convergência ― simultâneos. Tudo é escrita, e há autoria mesmo no texto que se pretende o menos pessoal possível e intenciona olhar apenas para outro texto, então não adianta: toda escrita olha também para dentro de si mesma. Escrever é sempre escrever.

A escrita de Copo vazio começou no curso de pós-graduação de formação de escritores no Instituto Vera Cruz e foi se transformando ao longo dos anos até chegar à versão final, que está saindo agora pela editora Todavia. Como foi esse processo pra você?

A pós-graduação no Instituto Vera Cruz foi importante não só para o processo de Copo vazio, mas para a minha transformação como escritora. Me ajudou a organizar a rotina de trabalho e família também segundo a literatura, abrindo espaço para escrever e ler, e proporcionou, nas oficinas, a riquíssima experiência de escutar o que outras pessoas tinham a dizer sobre o meu texto. Foi aí que entendi que um texto conseguia chegar até elas, tocá-las, quando sua escrita havia sido impelida por algum tipo de urgência, nem que fosse uma urgência momentânea. Escrever pode ser muito penoso, parece que estamos subindo uma ladeira com enorme esforço, mas, de repente, nos vemos diante de uma corredeira na qual é só tocar o pé para que nos trague e leve com velocidade a um lugar desconhecido e completamente nosso. É essa a sensação da urgência de escrever, do imperativo de escrever, e quando enfim chegamos nela, parece que os dedos escrevem sozinhos.

Copo vazio não se chamava assim nem era o que é quando foi apresentado como trabalho de conclusão de curso da pós-graduação, e eu achei que estava pronto, porque ainda não conhecia a sensação que tive uns três anos depois, a sensação de já ter dado tudo o que podia ao livro, de que ele já era, finalmente, algo sobre o que eu não tinha mais poder de decisão. Para chegar até ali, repensei e reorganizei a estrutura do livro, substituí capítulos inteiros, cortei frases e trechos aos quais era apegada, e percebi que os vazios que deixavam continuavam ali, mais potentes do que as palavras de antes, organizando o texto ao seu redor, como um pulso inaudível, mas capaz de manter o texto vivo.

A protagonista de Copo vazio algumas vezes parece se sentir anacrônica, compartilhando um sentimento muitas vezes retratado na história da literatura com grandes personagens literárias, como Dido, Emma Bovary, Anna Kariênina. Você faz um mergulho inquietante no mundo interno de Mirela, e quem lê pode acompanhar suas vulnerabilidades e afetos muitas vezes perturbadores. Você acha que sua experiência como psiquiatra e psicoterapeuta contribuiu para a construção dessa personagem? A sua experiência como leitora certamente sim, pois são muitas as relações de intertextualidade que podemos estabelecer durante a leitura…

Certamente minha experiência como psiquiatra e psicoterapeuta contribuiu para a construção dessa personagem. Por exigir, além de imenso cuidado, abertura e distanciamento na medida certa, a escuta clínica permite estar diante da fragilidade e da vulnerabilidade de muitas pessoas, e isso concede a formulação de hipóteses, ou mesmo conhecimentos, a partir dos quais podemos saltar para entender outras coisas. Algumas recorrências, por exemplo, nos fazem perceber que determinados tipos de sofrimento não são apenas individuais. Atendi e atendo uma quantidade considerável de pacientes, principalmente mulheres, mas não só, que sofrem de um jeito que pode parecer desmedido por amor, e isso tanto em consultório particular, quanto na minha experiência no hospital penitenciário, que durou oito anos. Pode-se pensar que ali só se sofre pela privação de liberdade, ou pela pobreza, ou pela injustiça, pelo racismo, pelas condições da prisão, mas ali também se sofre por amor. Parece óbvio, mas não é.

Copo vazio não trata de vários sofrimentos sobrepostos, mas apenas de um, como se quisesse isolá-lo para deixá-lo mais demarcado, explícito. Porque percebi que essas pessoas, por melhores que fossem suas condições de vida, ficavam devastadas diante do “abandono”, como se, ao menos por algum tempo, não houvesse outra possibilidade para além daquele amor perdido, como se a própria existência dependesse de outra pessoa que decidiu, seja lá por qual motivo, ir embora. Meu livro busca, através de Mirela, tatear ficcionalmente essa vivência, de alguma maneira investigar como esse desamparo se dá, mesmo em pleno século 21.

E, como você mencionou, minha experiência como leitora também contribuiu para a construção da personagem, embora eu tenha sido surpreendida em algumas leituras depois de tê-lo escrito. Em Razão e sensibilidade, de Jane Austen, por exemplo, Marianne sofre imensamente quando Willoughby, que ela recém-conhecera, desaparece sem dar explicações. Senti vontade de fazer algum tipo de menção ao livro em “Copo vazio”, inserir alguma passagem que ecoasse e homenageasse esse insuperável predecessor, quando me deparei com uma cena, Marianne abafando um grito de sofrimento numa almofada, que já estava em meu livro. Como se fosse o mesmo grito, o mesmo silenciamento, a mesma impossibilidade de fazer barulho e ser considerada inadequada ou até louca, a mesma incompreensão da própria dor.

Fabiane Secches é psicanalista e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo.

Natalia Timerman, todavia, 144 páginas, R$ 49,60 (pré-venda)


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