Narração e teatralidade em Guimarães Rosa
Rui Ricardo Diaz em cena (Foto: Bob Sousa)
Welington Andrade
“A linguagem de Guimarães Rosa é em língua portuguesa a que transmite a constante inventiva do mundo infantil, a busca de um modo novo de dizer a novidade de tudo”.
(Almeida Faria)
No âmbito da criação teatral produzida hoje em escala industrial nos grandes centros urbanos (há uma inegável “linha de montagem” tanto de espetáculos musicais apresentados segundo regras padronizadas de execução como de comédias baseadas na atuação de intérpretes histericamente histriônicos – é o caso de se perguntar se todo indivíduo, nos dias atuais, que fala alto, rápido e de maneira ansiosa teria mesmo um inquestionável talento cômico), boa parte do vastíssimo repertório teatral oferecido por uma cidade como São Paulo não tem outra função senão a de alimentar a sede de espetaculosidade e de sensacionalismo do espectador, submetendo-o a um estado de excitação por meio do qual a indústria cultural contemporânea procura desconectar os sujeitos de qualquer experiência de interioridade, oferecendo-lhes em troca as vivências insubstanciais da comunicação fática e do consumo.
Em virtude de seu caráter eminentemente artesanal, baseado na presença viva de um ator que estabelece com o espectador diante dele uma relação de convívio mútuo, que se retroalimenta por um “eu, aqui e agora” sempre evanescente e, por isso mesmo, irreproduzível do mesmo modo na próxima vez, o teatro pode resistir à corrente das sensações exacerbadas, a que estão submetidas as massas na cultura moderna. Reagindo à celeridade do tempo, à superficialidade da consciência e à previsibilidade dos conteúdos – marcas da nossa tão propalada modernidade tecnológica –, um espetáculo teatral pode proporcionar uma profícua via de acesso ao chamado “artesanato do espírito”, estimule tal artefato os fenômenos da consciência profunda ou ajude ele a sedimentar a experiência da subjetividade emancipadora.
Adaptado do conto A hora e vez de Augusto Matraga, de João Guimarães Rosa, e dirigido por Antonio Januzelli, o espetáculo-solo A hora e vez, com Rui Ricardo Diaz – em cartaz até o final de julho no Sesc Ipiranga – oferece ao espectador disposto a renunciar à zona de conforto das teatralidades mais exaltadas um belíssimo e intenso exercício narrativo e teatral, resultado do encontro entre a prosa de um escritor insuperável (cujo esforço na invenção da linguagem, segundo Antonio Candido, elevou o perfil da literatura brasileira a um patamar somente igualado pela obra de Clarice Lispector), a presença e a imaginação criadora de um intérprete tão sensível quanto seguro e as lições de um diretor-pedagogo que vem dedicando sua carreira a tocar de modo tangencial – o único possível – “o ser do indivíduo por meio do homem-ator”.
Último dos nove contos que integram a coletânea Sagarana – publicada originalmente em 1946 –, A hora e vez de Augusto Matraga configura-se em uma narrativa em que se fundem os registros épico, mítico e trágico em torno de um protagonista cuja história, vazada em discreto lirismo, nos é apresentada sob o signo de um heroísmo essencialmente dramático – traço este que convidou Roberto Santos a adaptar a obra para o cinema, em 1966, e Antunes Filho para o teatro, em 1986. O tecido fabular por onde transita a literatura de Guimarães Rosa é trabalho de paciente, dedicada e intensa urdidura dos fios estilísticos e formais, resultando, paradoxalmente, em um discurso orgânico, inato, no qual o exercício neológico é fruto de uma longa inquirição metafísica que o narrador empreende sobre o estatuto da palavra, seja no plano da oralidade, seja no da escrita. (Daí o engano dos muitos discípulos de Rosa que produzem toda sorte de neologismos pedantes e artificiais, porque entendidos como atracadouros e não como portos de passagem).
A estrutura épica de A hora e vez de Augusto Matraga diz respeito não somente à andança do protagonista em busca da ação memorável que o redimirá da vida pregressa que o marcara como também ao feito de guerra no qual essa mesma ação irá se converter A esfera mítica espraia-se por dois registros convergentes: ela está representada tanto pela “queda” de Nhô Augusto Esteves no rancho do Barranco (onde ocorre o longo – “e assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio” – e doloroso processo de expiação das tantas culpas que o atormentam) quanto pela “travessia” (tema tão caro à literatura do autor) que o personagem empreende sertão adentro rumo a sua hora e vez e que lhe confere um duplo conhecimento: do mundo e de si mesmo. Já o plano trágico está projetado sobre a própria estrutura circular da fábula – que flagra um personagem caminhando heroicamente rumo à própria aniquilação – e sobre uma série de elementos ambíguos, que Rosa manipula soberbamente: Matraga é a história de um vivo dado como morto; um justiçado que se transforma em justiceiro; um algoz que se transforma em vítima sacrificial; um homem augusto que mata um facínora de nome tão eufêmico: Joãozinho Bem-Bem; um ex-valentão que se apascenta, mas que, para concluir o processo de paz interior, precisa cometer um ato de grande violência. Destaque-se ainda – como bem observa Walnice Nogueira Galvão – o elemento grego “trago” (presente em “tragédia” – originariamente, “canto do bode”, isto é, o canto religioso com que se acompanhava o sacrifício de um bode nas festas de Baco), diluído no apelido “Matraga” que o personagem ganha somente ao final da narrativa e encarnado pelo próprio bode amarelo e preto que cruza o caminho de Nhô Augusto, preso por uma corda puxada por um cego. (São tantas as alegorias que ao leitor somente restam mesmo assombro e fascínio…).
Pois bem, o espetáculo-solo que Rui Ricardo Diaz e Antonio Januzelli conceberam a partir de tão denso material é de uma simplicidade formal espantosa e, paradoxalmente, de uma fecundidade teatral absolutamente sedutora. Diante de nós, no pequeno auditório do Sesc Ipiranga (que vem dando uma bem-vinda guarida ao projeto Teatro Mínimo, uma série de monólogos baseados essencialmente no trabalho do intérprete), um ator-narrador se apresenta e principia a contar uma mentira (“porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso acontecido, não senhor”) que aos poucos vai se transformando em verdade no nível do teatro, ao converter a imaterialidade da narração em corporeidade física.
A sabedoria deste ator-narrador, coligindo uma experiência fabular tão complexa, é explorar, diligentemente, a ambiguidade entre aquele que narra e aquele que presentifica o que narra, aproximando o ermo da página literária ao ermo da cena e ao ermo do corpo, por meio do qual o sertão (palco máximo de todos os ermos) se nos apresenta – sertão-mundo, sertão supra-teatral.
Abrindo mão de qualquer efeito espetaculoso e sensacional, o intérprete se concentra na projeção da palavra rosiana e de sua imediata corporificação, dividindo-se entre os inúmeros personagens, variando sotaques e modulações vocais, entoando algumas das muitas canções salpicadas na narrativa original. A fala, monológica, está impregnada de marcas sociais, e o processo de estetização por que passa a linguagem não tem outro objetivo senão o de recriar a intensidade da experiência. Diligentemente orientado por Antonio Januzelli, Rui Ricardo Diaz se afasta da tradição da interpretação realista, recuando particularmente ao estágio do ator-rapsodo, do contador de causos que coloca no mesmo balaio a epopeia, a poesia, a tragédia, o mito e o drama.
Há que se considerar um verdadeiro achado da montagem em questão a exploração de um conteúdo genuinamente dramático em Guimarães Rosa, a rigor, pouco explorado no teatro (impossível não pensar na belíssima montagem de Vau da Sarapalha, há muitos anos, com o Piollin Grupo de Teatro, da Paraíba, dirigida por Luiz Carlos Vasconcelos), e trabalhado aqui em registro discreto, delicado, sutil. A dramaticidade rosiana se projeta sobre um conjunto de ações ocorridas sempre em um espaço geográfico de imediata referência regional – o sertão brasileiro, palco de eventos naturais e de ações humanas.
Fazendo uso muito expressivo de um texto que não imita o mundo, antes comporta o mundo em suas teias, Rui Ricardo Diaz inscreve seu nome no mesmo rol em que estão gravadas as atuações de Leonardo Villar e de Raul Cortez. Diretor e ator fazem com que a desnuda palavra literária vista, na performance teatral, sua roupagem de forma soberana, fecundando mundos imaginários que produzem uma realidade teatral sui generis, de inteligibilidade e sensibilidade específicas.
Guimarães Rosa defendia a ideia de que “a palavra deve vestir-se como uma deusa, e erguer-se como um pássaro”. Ao final deste A hora e vez, aos espectadores não restará dúvida. Eles caminharam, sim, por uma teatralidade concebida nos cimos da fantasia criadora, por onde transitam não somente as divindades e as aves, mas também os artistas mais inspirados.
A HORA E VEZ
Onde: Sesc Ipiranga – Rua Bom Pastor, 822- Ipiranga
Quando: de 23/5 a 26/7. Sextas, 21h30. Sábados, 19h30
Quanto: R$ 20,00 (inteira), R$ 10,00 (meia), R$ 4,00 (comerciário matriculado no Sesc)
Info: (011) 3340-2000
welingtonandrade@revistacult.com.br