Não há heterossexuais

Não há heterossexuais
"Sem título", Joy Hester, 1949, Australia (Foto: Reprodução/Wikiart)

 

Um problema relevante em certos debates sobre sexo e identidade que circulam atualmente entre nós é produzido quando se parte do pressuposto de que existam heterossexuais. Segundo essa ideia, heterossexual seria aquela pessoa cujas escolhas de objetos recaem sobre algo que seria o “sexo oposto”. A princípio, essa seria a posição hegemônica em nossas sociedades. Ou seja, viveríamos em uma sociedade na qual a maioria das pessoas teriam, como escolha de objeto, o “sexo oposto”. De onde se seguiria algo como certo binarismo próprio a vida dos pretensos heterossexuais: presos em uma dinâmica do desejo que só reconheceria homens e mulheres, sendo que um polo seria submetido a identificações e outro a investimentos libidinais.

Mas há de se perguntar se toda essa gramática de “binarismos” e “heterossexuais” realmente descreve alguma vivência concreta do sexual. Talvez seria o caso de começar por se perguntar se heterossexuais realmente existem.

Pode parecer que uma questão dessa natureza seria ociosa, algo como uma provocação especulativa equivalente a se perguntar se existe, de fato, montanhas e números primos. No entanto, seria importante se perguntar sobre que tipo de existência é essa que se procura descrever quando se fala de “heterossexuais”. Que tipo de objetos tais termos cobrem? Onde eles de fato estão, em qual tipo de categoria?

Esclarecer esse ponto seria importante para sabermos quem são afinal esses “heterossexuais”, esses apóstolos do binarismo de que tanto se fala. Pois o que aconteceria se descobríssemos que não há ninguém sob esses termos, que não há sujeito algum que possa ser descrito dessa forma, que “heterossexual” é, vejam só vocês, uma categoria absolutamente vazia? Não seria, afinal, uma atitude mais subversiva do que imaginar que podemos encontrar “heterossexuais” andando nas ruas, trabalhando conosco ou mesmo vivendo em nossa própria casa?

Pois é possível que devamos fazer uma distinção importante e nem sempre levada em conta nos debates atuais. É possível não existir heterossexuais, o que não significa que inexista heteronormatividade. Quer dizer, não há práticas concretas que possam ser descritas como “heterossexuais”, embora não haveria dificuldades maiores em identificar discursos que procuram disciplinar comportamentos e significar relações a partir da crença na existência de heterossexuais. Tais discursos criam classificações e estabelecem uma gramática que inviabiliza, para os próprios sujeitos, o sentido das práticas das quais eles são portadores.

Assumir isto significaria que nosso problema não é um problema de “tolerância”. Não vivemos em um mundo que deveria saber lidar de forma mais tolerante com a multiplicidade de formas de relacionalidade que não podem ser descritas como “heterossexuais”. Nosso problema talvez seja muito mais estrutural. Vivemos em um mundo que tem uma gramática, com suas classificações e suas emendas posteriores, que simplesmente nada diz sobre a experiência concreta no campo do sexual. Uma gramática que não é uma “condição de possibilidade” para a orientação e a experiência do sexual, mas que é uma má “condição de impossibilidade”. Nesse sentido, nosso problema não é de “tolerância”. Nosso problema é de destituição. Há toda uma gramática inadequada que precisa ser destituída, pois não sabemos como falar do sexual.

Nesse sentido, o primeiro equívoco consiste em acreditar que “relações sexuais” é algo que ocorre entre “pessoas”, sejam elas duas ou mais. Pois sendo uma relação sexual aquilo que ocorreria entre “pessoas”, o próximo passo poderia ser então se perguntar: qual o tipo de gênero tal “pessoa” tem? Mas e se tais relações não se dessem no nível das “pessoas”, se essa descrição fosse, na verdade, um erro categorial?

Uma das ideais mais fortes da psicanálise a esse respeito, potencializada por Jacques Lacan, nos lembra que relações sexuais não se dão entre representações globais de pessoas, mas entre objetos que circulam entre corpos. Objetos que carregam traços de posições do desejo que desconhecem algo que poderia ser chamado de “determinações  de gênero”. Mas vivemos em uma metafísica tão empobrecedora que descrever relações sexuais como algo que se dá entre objetos parece alguma forma de degradação das “pessoas” envolvidas, de instrumentalização do outro, de “fetichismo” e coisas do gênero. Como se só houvesse força de ação e decisão em “pessoas”, não em “objetos”. Toda uma concepção jurídico-metafísica de atividade acaba assim por colonizar até mesmo a forma de compreendermos afecções. Há também um fetichismo da pessoa do qual deveríamos saber nos livrar.

 

 

Assim, dizer que relações sexuais
se dão entre objetos significa,
concretamente, que ninguém
deseja “mulheres” ou “homens”,
mas deseja objetos que circulam
ou se fixam entre os corpos,
em corpos.

 

 

Objetos esses que não são projeções de fantasmas individuais. O corpo do Outro nunca é uma tela de projeção. Ele é um espaço de encontro e nunca se erra um encontro efetivo, sendo a marca de sua efetividade a força bruta de duração. Se um encontro ocorre é porque há objetos que circulam, e a ideia de circulação é importante aqui. Eles tem a capacidade de passar de um lado para o outro porque eles fazem reverberar as histórias dos desejos dos sujeitos, a história de seus desejos desejados. Uma hora eles se encontram de um lado, outra hora eles se encontram de outro. E tal circulação é a expressão de que tais objetos não se fixam em  “gêneros específicos”. Por isto, eles podem levar um “homem” ou uma “mulher” a pontos de indistinção, eles podem inverter posições, eles podem permitir composições heteróclitas as mais variadas.

Quando um juiz da corte de apelação de Dresden, no século 19, cujo nome era Daniel Paul Schreber, tem um surto paranoico depois de imaginar que seria bom ser uma mulher “no momento do coito”, ele demonstrou que apenas um paranoico sentiria tal posição como exterior a si. Só um paranoico entenderia isso como algo tão invasivo que lhe levaria a construir um delírio que integraria tal corporeidade, tais objetos associados por ele ao gozo feminino, apenas à condição de uma modificação alucinatória de seu corpo tendo em vista a sua própria transformação em “a mulher de deus”. Fora da posição paranoica, estamos a todo momento fazendo tais passagens em nosso inconsciente (que é onde os encontros afetivos realmente se dão), tanto em um sentido quanto em outro.

Dito isto, é fato que a discursividade heteronormativa pode ser vivenciada como processo de reações fóbicas contra tais movimentos, contra tal circulação de objetos. Ela pode assim consolidar disposições produtora das piores violências e negações, pois violências nas quais se mistura destruição de si e incorporação, no outro, do que se quer destruir. Mas tais discursividades descrevem apenas uma tentativa desesperada e brutalizada de lidar com impasses típicos dos que compreendem e vivenciam o desejo no nível de “pessoas” e “indivíduos”.  Nesse sentido, é bem provável que a melhor forma de desativar tais discursos seja mostrando, cada vez mais, que eles não descrevem sujeito algum, que eles descrevem uma forma de disciplina que cresce exatamente no momento em que as sociedades começam a classificar sujeitos a partir das pretensas escolhas sexuais de pessoas que eles seriam.

“Mas, como assim? A heteronormatividade é um discurso sobre nada?”. Bem, esse não será o primeiro dos discursos sem objeto que conhecemos. O que pode nos levar a imaginar um momento histórico de emancipação no qual será absolutamente indiferente se sujeitos são portadores de estratégias distintas de circulação de objetos, absolutamente indiferente a especificidade da série dos corpos que sujeitos singulares privilegiam. Não há porque classificar séries diferentes em conjuntos distintos. A partir dessa indiferenciação talvez encontremos enfim uma forma melhor e mais bela de falar de sexo.

Vladimir Safatle é professor titular do departamento de filosofia e do instituto de psicologia da USP


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