Não critiquem o general
O general e ministro interino da Saúde Eduardo Pazuello (Foto: Najara Araujo/Câmara dos Deputados)
Na outra semana, em um debate online, o ministro Gilmar Mendes, do STF, verbalizou o que muitos pensam da situação de um general interinamente assumindo o Ministério da Saúde no período mais letal da pandemia que se abate sobre nós. De fato, constitui um absurdo que um general seja o que o governo Bolsonaro considere o melhor quadro para assumir a pasta, depois de tornar impossível a permanência dos dois médicos que o precederam. Assim como não faz sentido algum, em um universo em que méritos e competência signifiquem alguma coisa, que um general se considere preparado para liderar o país quando este enfrenta, e perde vergonhosamente, a guerra contra o novo coronavírus.
“Não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. Não é aceitável que se tenha esse vazio. Pode até se dizer: a estratégia é tirar o protagonismo do governo federal, é atribuir a responsabilidade a estados e municípios. Se for essa a intenção é preciso se fazer alguma coisa. Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas”. E completou: “É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso”.
Note que Gilmar Mendes não fez um julgamento legal. Expressou uma preocupação social que está na cabeça de todos nós: um general, além de tudo mantido por dois meses na condição de interino, não pode liderar ante um vírus que está matando acima de mil brasileiros por dia nas últimas duas semanas. Obviamente, não está dando conta, dizem os fatos. Em seguida, o ministro do STF leva o argumento para a minha especialidade, a questão da imagem pública. Constata acertadamente o óbvio: será um desastre para a imagem das Forças Armadas os mortos que se empilham durante o turno de guarda de um general. E a percepção da maioria das pessoas é de que não tem ninguém competente no comando federal executando uma estratégia para nos tirar desta situação.
Ora, em abril de 2019, Hamilton Mourão demostrava já haver entendido o que estava em jogo em termos de imagem institucional com tantos militares no governo. “Se nosso governo falhar, errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas, daí a nossa extrema preocupação”. Pois é, parece que a “extrema preocupação” se dissipou apesar do fracasso gritante do governo Bolsonaro ao enfrentar a pandemia e não obstante os 2.930 militares ocupando cargos nos três Poderes (segundo o jornal Poder 360).
O que Gilmar Mendes apontou foi o óbvio ululante, mas os generais, os do governo e os que estão na ativa nas Forças Armadas, resolveram atirar no pintor por não gostarem do que o quadro retratava. Os comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica (com o aval de Bolsonaro, segundo o Correio Braziliense) rugiram em uma nota publicada afirmando que “comentários dessa natureza, completamente afastados dos fatos, causam indignação”. E continuam: “Trata-se de uma acusação grave, além de infundada, irresponsável e, sobretudo, leviana. O ataque gratuito a instituições de Estado não fortalece a democracia”.
Primeiramente, não foi uma acusação, foi uma constatação muito difícil de afastar apenas com perdigotos e dedos em riste. Nossa imagem pública não é “nossa” porque nos pertence, porque a controlamos conforme a nossa conveniência. É “nossa” apenas porque se refere a nós. Não somos os sujeitos das nossas imagens públicas, somos o objeto delas. Repito isso há vinte anos para os meus alunos.
Tem uns toques de graça nesta farsa. Em Repúblicas, os governos e a atividade política são reservadas aos civis. Não há patentes em governos civis, são todos cidadãos exatamente iguais uns aos outros no gozo do status que a cidadania lhes confere. E iguais sob a Lei. Mas os nossos generais que exercem cargos civis continuam se achando… generais. Não gostam de ser criticados na esfera política por suas ações que são políticas. Rá!
Ora, para começo de conversa, se alguém atua na política não o faz enquanto general, major ou capitão, mas como político. Político com mandato conquistado em eleições populares ou com mandato conferido por quem foi eleito. E ser político é ser criticado, contestado, ter que disputar as interpretações dos fatos e, sobretudo, prestar contas, ser responsabilizado, dobrar-se às autoridades civis, inclusive às autoridades do Poder Judiciário.
Para entender isso, imagine se os cardeais católicos viessem a trabalhar no governo, passassem o dia todo no Twitter falando mal da oposição e dos críticos do presidente. Além disso, imaginem que fossem incompetentes nos exercícios dos cargos civis que lhe foram confiados e depois de tudo ainda quisessem ser tratados com as reverências sacerdotais e reivindicassem a sacralidade do próprio múnus. O poder sacerdotal se exerce no âmbito religioso e só. O poder militar se exerce na órbita militar, apenas. Na República todo poder é secular e civil, o jogo, portanto, é outro. Se o general não quer ser criticado, não desça para o playground da esfera pública, para o jogo mundano e civil da política. Quer ser general e ser tratado com respeito hierárquico, continências, deferências, pompas e circunstâncias? Volte para a caserna, saia do Twitter político, pare de se meter na vida civil. Aqui não tem generais, só cidadãos, todos do mesmo nível e levando na cara por suas falhas.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)