Nada, mas rútilo
Alcir Pécora
Na Sala Paschoal Carlos Magno do Teatro Sérgio Cardoso (SP), entre os dias 8 e 30 de maio passado, transcorreu a terceira temporada do espetáculo de dança Rútilo nada. Dirigida por Daniel Fagundes e interpretada por Wellington Duarte e Donizeti Mazonas, a peça se baseia livremente na novela homônima de Hilda Hilst, a qual, a meu ver, foi interpretada e executada pela dupla de atores-bailarinos de maneira própria e nada óbvia.
O espetáculo me deu também a oportunidade de relembrar as escolhas que fiz ao editar Rútilo nada na coleção das Obras Completas de Hilda, pela Globo. Eu o coloquei num volume que se intitulou apenas Rútilos, saído há exatos dez anos. O novo título, reduzido a um único termo, foi dado pela própria Hilda, quando aquiesceu com a minha proposta de editar Rútilo nada de forma bem diferente do que o fora na edição original de 1993. Então, a novela aparecia como o único texto inédito de um volume que incluía ainda a republicação de “Qadós” (1973) e de “A obscena senhora D” (1982).
A minha ideia era trazê-la para junto de um conjunto quase desconhecido de contos intitulado Pequenos discursos e um grande, que aparecera pela primeira vez em 1977, no volume intitulado Ficções, o qual também incluía a reedição de dois textos em prosa, “Fluxo-Floema” (1970) e, novamente, “Qadós”. O procedimento parecia recorrente: a cada reedição dos textos de prosa, Hilda procurava encaixar um inédito. Em 1977, foi Pequenos discursos e um grande; em 1993, Rútilo nada.
Acontece que esses textos, que nunca haviam obtido uma edição exclusiva, me pareciam conversar entre si. Especialmente notável era o espelhamento entre o conto “Lucas, Naim”, de Pequenos discursos e um grande, e a novela, que viria a sair mais de 15 anos depois. Esboço, a seguir, as linhas principais do diálogo entre eles.
Fluxo de consciência
Em “Lucas, Naim”, Lucas, um homem maduro, bem sucedido, casado, pai de uma filha, sofre uma reviravolta em sua vida: é acometido de uma paixão irrefreável – em tudo distinta de sua forma usual de “pensar com propriedade” –, por Naim, rapaz de 25 anos que tinha o “olho cego” dos jovens, “soberbo de aparências”, “mudo quase sempre”, um evidente sedutor, embora inconfesso.
Ao longo do fluxo de consciência conduzido por Lucas, ele se dá conta de que Naim é apenas uma invenção, decorrente de um desejo que o ultrapassa. Esse mesmo impulso o leva a repensar a sua vida inteira, o que acaba por confrontá-lo com a consciência de sua mortalidade, e a se interrogar sobre o “descarnado de mim”, isto é, o que avança além da vida dos “outros paralisados aqui”.
Neste momento, além de Lucas e Naim, revela-se uma terceira personagem: o “morto” que Lucas traz dentro de si e que se infiltra em seu amor. Evidencia-se então, de um lado,o “gozo grosseiro” do jovem, cuja cegueira reduz o “amor na velhice” a um “espetáculo imundo e risível”. De outro, faz perceber que a “luz” que Lucas atribuía à “tosca e tola quase adolescência” de Naim está menos na beleza do efebo do que nas suas dores de homem maduro. Enfim, Lucas reconhece uma espécie de “dupla torção” da existência, na qual vida e conhecimento se estranham e contradizem, sem encontro possível. O conto fecha com o suicídio de Lucas, que se lança da janela de seu apartamento.
Em Rútilo nada, uma situação muito semelhante à de “Lucas, Naim” recebe uma abertura melodramática: Lucius Kod– talvez do latim quod (por quê/para quê) –, 35 anos, jornalista, encontra-se desfigurado, aos gritos, diante do caixão de Lucas, seu jovem amante, poeta e também namorado da sua filha, o qual havia se suicidado. Diante do escândalo, envergonhadíssimos, os amigos, a filha e o pai de Kod tentavam inutilmente contê-lo. Aos comentários de curiosos à volta, que enunciavam uma espécie de doxa repressora, sobrepunham-se ainda as violentas imprecações do velho e poderoso banqueiro, pai de Lucius, contra a indecência do filho.
No âmbito dessa cena, que remete abertamente a Nelson Rodrigues, Lucius passa a relembrar, em fluxo de consciência, o encontro entre ele e Lucas, desde “os começos” –, que descreve como um “abrir-se” da casca, atingido em “pânico” pela beleza do jovem, ao ser-lhe apresentado pela filha – até os dilemas sucedidos em seguida. Em nome da “ética”, Lucas ainda tenta resistir ao amor entre eles, pois aceitá-lo infligiria sofrimento à namorada. Para Lucius, entretanto, a única ética que passa a contar é a da liberdade recém-descoberta com a paixão. Era o que o levava a reconhecer o “oco de si mesmo” e a tentar “criar-se novo”.
Lucius relembra também os seus ciúmes diante da beleza de Lucas, assim como a extraordinária “junção do nojo e da beleza” que sentiu na “primeira vez” em que, nos seus termos, “suguei o sexo de um homem”. Neste ponto, o fluxo é suspenso e, em seguida, na forma de uma colagem, é apresentada a carta-testamento deixada por Lucas, que produz uma peripécia na narrativa. A carta revela que Lucas fora estuprado por dois homens contratados pelo pai de Lucius, o banqueiro moralista que o repreendia em público, e ainda que este, diante do corpo nu do jovem, acaba por beijá-lo, revelando a sua própria volúpia emparedada.
Neoplatonismo pessimista
Se essa peripécia lembra mais uma vez o teatro de Rodrigues – com direito a bofetões, marginais estupradores e o beijo do velho enrustido no efebo ensanguentado –, o desfecho, que vem na forma de uma nova montagem, não poderia ser mais hilstiano, pois traz os últimos versos de Lucas. Todos pretendem indicar que a experiência radical dos afetos leva necessariamente ao confronto dos limites e, portanto, ao limiar da morte, onde se acumulam e intensificam os significados: “Por que tudo brilha e é mais? Apenas porque me despeço?”.
Em resumo, nos dois textos, o amor compõe uma situação existencial sem saída, o que também se traduz por uma experiência de consciência ou de antecipação da morte. Assim, em “Lucas, Naim”, ocorre tanto a constatação de uma assimetria insuperável entre os amantes, como uma identificação da solidão que partilham. A incapacidade de realização amorosa, evidente no mais jovem, era também a do homem maduro, paradoxalmente disposto a sacrificar tudo pelo amor. E ele tem de fazê-lo, pois, vivido na radicalidade que lhe é própria, o amor leva não à conjunção dos amantes, mas à consciência da morte.
Poder-se-ia ainda dizer que há no conto uma espécie de neoplatonismo pessimista: a promessa do bem entrevisto no amor não se cumpre no amado, nem conduz o amante ao ser que o transcende. Ao contrário, lança-o para a morte e o nada.
Em Rútilo nada, o amor esboça um voluntarismo de resistência à doxa conservadora, mas toma um rumo completamente distinto ao aprofundar a contradição entre uma ética da lealdade e a indeterminação libertária que reside no próprio núcleo amoroso e não fora dele. A incompreensão dos amantes, própria deles, demonstra a impossibilidade de se formular uma política do amor contra as violências do mundo. A rigor, o próprio amor o excede em cruezas. Há nele uma espécie de equívoca clausura, um fluxo voraz de sentimentos, cujo reconhecimento equivale à estranheza e não ao acolhimento do humano.
Finalmente, como é possível notar neste esboço de interpretação, para Hilda, a poesia ocupa um lugar privilegiado nesse jogo de amor e morte. Cabe-lhe uma espécie de rutilância que anuncia e precipita o fim. Uma fulguração niilista do sol do amor rebatido nas armas rutilantes dos amantes: cor de ouro, gozo e assombro, em vista do nada.