“Nabucco” sob a ótica de tirar o direito do outro de pertencer a um lugar

“Nabucco” sob a ótica de tirar o direito do outro de pertencer a um lugar
Christiana Jatahy (foto: Leo Aversa)

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Christiane Jatahy é uma das mais reconhecidas diretoras de teatro brasileiras dentro e fora do país. Em 2022, a encenadora carioca, que divide sua vida entre o Brasil e a França, tornou-se a primeira artista brasileira a receber o Leão de Ouro na Bienal de Veneza pelo conjunto de sua obra.

Neste dia 27 de setembro, ela estreia no Theatro Municipal de São Paulo a ópera Nabucco, de Giuseppe Verdi. Clássico do repertório operístico do século 19, a obra trata do exílio do povo hebreu.

De um lado, assistimos às aspirações despóticas do rei babilônio Nabucodonosor II; de outro, ao sofrimento dos hebreus, liderado por Zaccaria, que luta pela libertação de seu povo, assim como, à época em que foi escrita a peça, a Itália lutava contra o domínio austríaco, ao norte do país.

Para Christiane, a importância de adaptar Nabucco para os dias de hoje reside no fato de que a obra carregar uma carga simbólica muito afinada com o contexto das crises migratórias atuais, com a ocupação da faixa de Gaza e com exílio ao qual cerca de 8% da população mundial é submetida, segundo dados de Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).

Em entrevista à Cult, a encenadora falou sobre a pertinência de Nabucco nos dias de hoje, a relação entre o cinema e o teatro em sua obra e a potência das artes cênicas brasileiras hoje.

Como a ópera Nabucco, composta em 1842, pode ser relacionada ao atual conflito entre Israel e palestinos? Sua encenação, em alguma medida, dialoga com o que está ocorrendo no Oriente Médio?

Quando eu comecei a pensar no projeto, o conflito ainda não havia atingido essa gravidade que observamos hoje. Esse conflito existe há muito tempo, mas isso foi antes da atual guerra começar. Eu fui convidada para montar essa ópera pelo diretor artístico do Grand Théâtre de Genève, na Suíça. Ele sugeriu a montagem de Nabucco após assistir a um outro trabalho meu, chamado O agora que demora, que também foi apresentado no Sesc Pinheiros em 2019. Esse trabalho evoca a obra de Homero para falar sobre os verdadeiros Ulisses, sobre as pessoas que estão vivendo de fato as suas travessias em busca de sua Ítaca. Trata-se de pessoas refugiadas de sua própria terra, como é o caso dos palestinos. Eu filmei em vários lugares, como na Palestina, no Líbano, na África, na Amazônia e na Grécia. Quando comecei a pensar na transposição de Nabucco para os dias de hoje, eu já tinha a ideia de fazê-lo de uma maneira palimpséstica, ou seja, escrevendo por cima dessa história original. Nabucco é uma história bíblica que foi escrita falando sobre a invasão austríaca na Itália, um momento histórico de ocupação. Por isso, a ópera de Verdi já trazia essa possibilidade de falar sobre as ocupações atuais. Não apenas sobre o tema da guerra, mas também sobre o expansionismo, essa ideia tirânica de tirar o direito do outro de pertencer a um lugar. A ópera foi criada nesse contexto, e hoje isso fica mais forte e intenso, pois estamos falando de vários povos que vivem isso, como na África, mas também no Oriente Médio com esse horror que está acontecendo na Palestina.

crédito: Larissa Paz
crédito: Larissa Paz

Algumas de suas obras anteriores exploravam a intersecção entre o teatro e o cinema. Como você articula tais linguagens na encenação de Nabucco?

Em todos os meus trabalhos dos últimos anos eu venho trabalhando com essa fusão e essa intersecção entre o teatro e o cinema. Eu sou formada por esses dois territórios artísticos, então eles dialogam sempre na minha criação. No caso de Nabucco, essa intersecção foi importante porque eu queria que o cinema trouxesse o protagonismo do povo. Há algo muito importante que acontece na transposição dessa ópera, que às vezes não é muito perceptível, que é que os dois lados, o hebreu e o assírio, nas figuras de Zaccaria e de Nabucco, tentam se apropriar da vontade do povo. O cinema entra para trazer o rosto e a história das pessoas que estão aí vivendo como sempre: sendo vítimas dos tiranos. O cinema mostra o conflito e a ação, mas mostra principalmente os rostos, o coro, o coletivo e os refugiados.

Quando eu penso na presença do cinema em cena, o cinema não é só a projeção, mas também todos os dispositivos cinematográficos presentes na dramaturgia. A presença das câmeras está dentro da história que estamos contando. Elas estão misturadas às pessoas e são, de alguma maneira, a mediação e as armas do personagem Zacarias. Por isso, em um primeiro momento, o personagem tem essa relação com as câmeras. O próprio cantor opera uma câmera. Depois, essas câmeras vão deixando de ser comandadas pelo personagem. A presença dos câmeras como portadores da mediação do cinema está dentro da história que estamos contando.

O que a mobilizou a encenar um clássico do repertório operístico, após sete anos da última montagem desta obra de Verdi em São Paulo?

Estreamos Nabucco no ano passado em Genebra, na Suíça. Foi um sucesso enorme. O Theatro Municipal de São Paulo já vinha, há bastante tempo, tentando encontrar um momento para que eu pudesse realizar uma ópera aqui. Eles assistiram ao Nabucco que eu havia montado lá e, conversando, decidimos trazer essa transposição para cá. É a mesma encenação. Mudamos os solistas, o coro, o maestro, mas a proposta é a mesma. Depois daqui, vamos apresentar com outros cantores na Antuérpia e em Luxemburgo.

Há alguma técnica que você use para lidar com um elenco tão numeroso em cena?

A técnica mais importante é a técnica do humanismo, valorizar as pessoas, conversar com cada indivíduo que está presente. Isso significa saber que um coletivo é composto de muitos indivíduos, e que cada um deles tem importância para aquele coletivo existir. A minha prática é trazer as pessoas para dentro do projeto, estar junto com elas e escutá-las em todos os sentidos. O grupo de pessoas em situação de refúgio com o qual temos continuamente conversado também é protagonista dessa história. Pessoas de vários lugares do mundo. Muitas pessoas da África, e do Oriente Médio.

crédito: Larissa Paz
crédito: Larissa Paz

Como a direção dialogou com a cenografia e os figurinos da montagem?

Desde o início do projeto eu trouxe a ideia de falar dos dias de hoje. Os figurinos precisavam ser atuais e lembrar pessoas que você encontra na rua. Outros elementos como aquele grande tecido que é um elemento de disputa, ou o paletó do Nabucco também partem da minha primeira concepção, que vem da ideia de que o poder é uma roupa que vestimos e perdemos. Ninguém detém o poder. Ele é dado e tomado. O cenário foi pensado com esse jogo de espelhos, que inclui o público. A partir dessa concepção, eu comecei a trabalhar com os colaboradores. Em particular, com Thomas Walgrave e Marcelo Lipiani, que fizeram o cenário comigo, e An D’Huys, uma cenógrafa belga que fez os figurinos comigo. A partir daí, começam a entrar os colaboradores, assim como no cinema.

O que o universo romântico da ópera italiana tem a dizer ao teatro pós-dramático e à cultura pós-moderna nos dias de hoje?

Todo o material clássico pertence a todos. Ele é um material da memória e da nossa história. Quando trabalho com um texto clássico, sempre penso de que forma ele pode reverberar nos dias de hoje. O teatro pós dramático é uma desconstrução das ferramentas e das histórias, mostrando o momento em que as pessoas estão construindo essas histórias. Apesar de não ser associado ao teatro pós-dramático diretamente, Brecht inaugura isso. A maneira de contar a história é o que muda, não necessariamente a história. É isso que está em Nabucco através de alguns elementos, como o palco aberto, a ausência da cortina e os figurinos. Tudo isso está lá para contar uma história que sabemos que é do passado. A maneira de contá-la é o que a atualiza.

Você é uma das diretoras de teatro brasileiras mais bem sucedidas dentro e fora do país. Como avalia as artes cênicas brasileiras em comparação ao panorama europeu, onde tem atuado com regularidade?

Nos últimos anos, eu tenho tido a possibilidade e também o privilégio de poder trabalhar tanto no Brasil quanto fora. O que eu vejo são estruturas e possibilidades de trabalho muito diferentes. Existe uma valorização do artista, um apoio para ele desenvolver seu trabalho e um estímulo à formação de público que fazem com que exista uma infraestrutura de criação muito mais favorável em alguns países da Europa do que no Brasil. Claro que estamos falando de um abismo social e uma diferença econômica, mas é muito importante ressaltar que temos uma potência enorme de artistas no Brasil, assim como uma capacidade de criar e uma diversidade que são importantíssimas artisticamente. Isso é visto com muito interesse pelo mundo inteiro.

O que mais precisamos agora é apostar, apoiar e valorizar os artistas brasileiros, porque há muita coisa boa acontecendo aqui. Só precisamos de espaço e apoio para deixar isso existir.

Nabucco
Ópera em quatro atos de Giuseppe Verdi, com libreto de Temistocle Solera.

Onde: Theatro Municipal de São Paulo – Praça Ramos de Azevedo, s/n – República – SP
Quando: de 27 de setembro a 5 de outubro. Às 17h nos dias 28, 29 e 5 e às 20h nos demais dias
Quanto: de R$31,00 a R$200,00 (inteira)

Victor Kutz faz parte da redação da Cult.

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