Na escureza da floresta

Na escureza da floresta

 “Meu desejo e pensamento (…numa indiferença enorme,,,)/ Ronda sob as seringueiras (… numa indiferença enorme…)/  Num amor-de-amigo enorme…

Mário de Andrade, Acalanto do seringueiro.

Dezuó, breviário das águas é o nome do espetáculo que o Núcleo Macabéa está apresentando em sua sede na Barra Funda até o próximo dia 16 de maio. A peça narra a trajetória de um menino que, após a expulsão de sua vila natal – em virtude da construção de uma usina hidrelétrica no rio Tapajós, oeste do Pará, na Amazônia brasileira –, cresce e se transforma em um andarilho das grandes cidades, por onde passa a perambular desenraizado, mas ciente de seu passado ancestral.

O texto é do poeta e dramaturgo Rudinei Borges, também ator e diretor de teatro, e constitui a viga mestra que dá sustentação à rude beleza do espetáculo, crédulo de sua singeleza, austero em sua genuidade, como uma casa muito antiga desprovida de ornatos e carente de complexidades, mas sabedora de uma verticalidade essencial, uma casa de taipa, pois. O autor procede em sua criação a uma bem-vinda fusão dos registros lírico, épico e dramático, de clara inspiração rosiana. A linguagem por meio da qual Dezuó narra sua trajetória está vazada em arranjos poéticos cuja finalidade é retirar o espectador do plano da comunicação fática – sempre seduzida pela falácia da informação imediata – e conduzi-lo pelo terreno da elaboração da linguagem – a segunda pele com a qual o protagonista se veste para resistir ao dolorido processo de escarificação (o termo é do próprio dramaturgo) de que é alvo. Frases curtas, ritmo sincopado, elipses, símiles e marcas de discreta oralidade salpicadas aqui e ali são os fios condutores do estilo da peça que levam Rudinei a tanger continuamente os domínios do lirismo. Mas o registro épico também irrompe no texto, quando este se dispõe a narrar não somente as andanças de Dezuó como também seus pequenos feitos, proezas e ações. Singulares em sua pequenez e, por isso mesmo, memoráveis. Por fim, a narração se converte em ação dramática, e o narrador se transforma em atuador, actante, ator da fábula que seu próprio corpo intermedeia e à qual imprime a marca de uma presença viva.

E eis que aqui chegamos à condição essencial para que uma proposta como essa seja bem-sucedida: o trabalho de interpretação. Edgar Castro é um dos excelentes atores que, residindo em São Paulo já há um bom tempo, têm ajudado a solidificar a vocação inequívoca da cidade para o exercício de um tipo de teatralidade que experimenta, desorganiza, reconfigura e ousa, com rigor e consistência, enveredar pelas formas artísticas não tuteladas pelo mercado do entretenimento ou pela indústria cultural. O custo dessa opção, Edgar e seus pares o sabem muito bem, é alto – mas recompensa o genuíno artista-criador, fazendo-o entrar no edifício da história recente do teatro paulistano pela porta de chifre da invenção a serviço da memória social, e não pela porta de marfim da fama que corteja antes de mais nada a vaidade e a auto-exposição. Edgar Castro explora muitíssimo bem os recursos técnicos e artísticos de que dispõe. Seu corpo e voz são cingidos intermitentemente pela discreta emoção que a atmosfera dramática exige dele, ao mesmo tempo em que são também estimulados por certo apego à razão da qual o intérprete não se desvencilha, preocupado em demarcar uma performatividade tributária do teatro épico. Em cena, o multi-instrumentista Juh Vieira, também diretor musical do espetáculo, amplia a dimensão sensorial e espiritual de Dezuó, breviário das águas, concebendo uma rica espessura sonora que remete, sobretudo, dentre outros efeitos cênico-musicais, a um país idílico, que talvez não exista mais. Ou ao espaço feliz de que fala Gaston Bachelard.

Se do texto emanam os registros lírico, épico e dramático, da instalação cenográfica e dos figurinos, a cargo de Telumi Hellen, eclodem com muita contundência, por sua vez, os fumos míticos da encenação. Elementos primordiais como a água e a terra dominam o cenário, isolados em suas plasticidades específicas, mas fundidos na elasticidade do barro úmido. A cenografia comporta igualmente a presença dos reinos animal, mineral e vegetal. Instaurados sobre uma mandala em forma de hexágono que serve de palco, altar e templo. E de um mundo liricamente construído; dramaticamente aniquilado. É sobre ela que o demiurgo Dezuó irá modelar a matéria de que é feita sua ancestralidade, elegendo os pilares que dão sustentação a esse universo, para o qual o uso de adereços singulares é em si um grande acontecimento na poética da cena; sobre ela também, o anjo do apocalipse Dezuó irá promover o caos, a desordem e a destruição. Acompanhamos, assim, a transição do mundo ao imundo, movimento de reversão que os figurinos também captam muito bem, ao enunciarem paulatinamente a vestimenta mísera, mas digna; o despojamento involuntário e o andrajo inevitável.

Um último registro está faltando e ele advém do trabalho da direção, de responsabilidade de Patricia Gifford. Trata-se da dimensão ética da empreitada. A diretora combina com muita imaginação os elementos que têm à disposição, insuflando neles o sopro de uma eticidade sensível. Texto, atuação, trilha sonora, cenário e figurinos servem bastante bem a propósitos essencialmente críticos, mas que passam ao largo de qualquer proselitismo. Não há discurso; há simplesmente narração. A grande qualidade do trabalho de Patricia é conduzir o espectador pela via da aventura que vai se esgarçando aos poucos em desventura. Experimentada por nós duplamente: seja pela via da dimensão sensorial de que o espetáculo não abre mão em momento algum, seja pela via da razão a que o projeto de direção acaba nos conduzindo com discretos engajamento e prontidão.

Para além do senso comum de que é preciso preservar a natureza e as comunidades que vivem de seus benefícios, Dezuó, caminho das águas talvez advirta a nós todos brasileiros a respeito de quão falaciosa é nossa entrada no mundo da civilização técnico-industrial de matriz europeia. Diante dos discursos que justificam a expropriação tecnocrática dos recursos naturais do planeta beirando as raias da desfaçatez, é preciso lembrar com Joseph Roth que “a natureza não é uma instituição”. Em suas derivas por Berlim em 1920, o escritor e jornalista alemão observava: “O europeu ocidental lançou-se à natureza como quem vai a um baile à fantasia. Ele tem uma relação de capote de chuva com a natureza. Vi andarilhos que trabalham como contadores. Não precisavam de bastões de caminhada. O terreno é tão plano e suave que uma sóbria caneta tinteiro lhes bastaria. Mas o indivíduo não vê o terreno suave e plano. Vê a ‘natureza’. Se quisesse velejar, vestiria provavelmente um terno branco de seda crua, herança do seu avô, que também velejava. Não tem ouvidos para o murmurejo das ondas e não sabe da importância que tem o estourar de uma bolha. O dia em que a natureza virou uma estação de águas – acabou-se”.

O mais recente trabalho do Núcleo Macabéa – coletivo cujo nome evoca a força de resistência que há tanto na alusão à última personagem romanesca de Clarice Lispector, quanto na relação que tal figura emblemática estabelece com os obstinados macabeus, o antigo povo semítico que, segundo a Bíblia, defendeu o templo no Monte Sião contra a opressão dos gregos – convida o espectador a usufruir de uma bela fábula, mas não a se contentar somente com a sua contemplação. “Só o que a gente pode pensar em pé – isso é que vale”, afirma Riobaldo em Grande sertão: veredas, obra máxima da literatura brasileira com a qual Dezuó firma seu movimento de translação. Ao sair do espetáculo, talvez possamos refletir sobre como serão os aromas, a maciez ou a aspereza de outros chãos que também são nossos. E em como vivem naquelas paragens os milhões de cabras resistentes tão brasileiros como nós. Um teatro que nos convide a pensar nessas coisas de pé é o que conta, o que interessa, o que finalmente vale.

Dezuó
Onde:
Casa Livre – Rua Pirineus, 107 – Barra Funda
Quando: até 16 de maio; sábados, às 21h; domingos e segundas-feiras, às 20h
Quanto: gratuito (necessário retirar na bilheteria com 1h de antecedência)
Info: (11) 3257 6652 ou (11) 99644 8014

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