Música Clássica – Norman Lebrecht

Música Clássica – Norman Lebrecht

Quando o poder morre, a música pode fornecer outro tipo de orgulho, munida de um melhor senso de coletividade

O verão chega ao fim na Alemanha e dá lugar a Beethoven. Desde o primeiro festival de 1845, a pequena cidade às margens do Rio Reno celebra seu filho mais ilustre à moda de cada época: triunfal, nos tempos de Bismarck; racial, na era do nazismo; e de maneira global desde então.

O que chama atenção para o Festival Beethoven de Bonn, diferentemente dos demais eventos similares do mundo moderno, é a sua natureza política (benigna ou maligna) inata. E esse aspecto nunca esteve tão evidenciado quanto nesta edição, quando a Alemanha comemora o sexagésimo aniversário de seu Estado moderno, consolidado em Bonn em 7 de setembro de 1949.

Entretanto, outras memórias um pouco mais constrangedoras fazem-se presentes: o aniversário de 70 anos da invasão de Hitler na Polônia, as duas décadas da queda do Muro de Berlim e os 10 anos desde que o governo alemão se mudou para Berlim, deixando Bonn como uma cidade fantasma, sem nada em que se apoiar. Nada além de Beethoven.

Isso explica o que estou fazendo às 11 horas da manhã de um domingo num salão abandonado do Bundesrat, a câmara superior do Parlamento nacional, envolvido em uma maratona musical, década por década, que contempla a Weg der Demokratie, a estrada alemã rumo à democracia. A Bundesrat que sediou sua última sessão significativa em julho de 2000.

Um jantar performático

Abaixo do púlpito, quatro homens estão sentados em volta de uma mesa de madeira posta para o jantar. Um deles pega o seu prato e começa a girá-lo, os outros fazem o mesmo, vozes soam e a louça se quebra. Essa é a obra Bauernszene, do compositor Dieter Schnebel, uma pequena obra-prima de arte performática da década de 1990, uma metáfora dos debates nacionais proferidos em mesas de conferência.

Como se fosse um prelúdio, a ex-ministra da Casa Civil, professora Ursula Lehr, relembra como ficou detida em uma cerimônia de Estado, em Varsóvia, juntamente com o chanceler Helmut Kohl, na noite em que o Muro de Berlim caiu. O aviso em minha mesa diz “Bremen”; sou um senador não eleito por um dia. Os performers da vez são especialistas em hardcore eletrônico do Musikfabrik e do Institut für Feinmotorik.

Em outro recinto parlamentar, que outrora abrigava uma usina de tratamento de água, o antigo ministro da Economia, Otto Lambsdorff, descreve o terrorismo de Baader-Meinhof e a estagnação financeira da década de 1970. O cenário misteriosamente contemporâneo tem como pano de fundo sonoro um arranjo a cappella do álbum Abbey Road, dos Beatles, feito pelo grupo Atrium. Nesses anos, os problemas da Alemanha eram diferentes dos dos outros países, onde a crise do petróleo no Oriente Médio predominava, embora sua trilha sonora, como no resto do mundo, fosse feita pelo quarteto de Liverpool. Os anos 1950, um tempo de milagre econômico para a Alemanha, foram traduzidos por um ciclo diurno de jazz norte-americano, e a década de 1980 pela sexualidade à flor da pele sugerida pelos tangos de Astor Piazzolla.

Na hora do chá da tarde, ocupamos a “Casa Branca” alemã, o Palais Schaumburg, para uma programação da década de 1960, composta por Cage, Stockhausen, Kagel e o hilário Poema Sinfônico para 100 Metrônomos, de Ligeti, um lembrete de como a Alemanha foi um dia a plataforma para o progresso do modernismo.

O dia termina no Haus der Geschichte (Museu Histórico) com um recital das aventuras contemporâneas de Salome Kammer, uma estrela da série televisiva Heimat, de Edgar Reitz. E uma estreia mundial de Peter Ludwig – uma música de cabaré que combina os nomes de todos os chanceleres alemães do pós-guerra – reforça a impressão de que a busca da renovação cultural é uma questão nacional.

 

Como salvar a cidade do ostracismo

E em nenhum lugar essa busca é mais controversa do que em Bonn, onde planos para erguer a sala de concertos Beethoven, de 75 milhões de euros (109 milhões de dólares), para substituir o sóbrio salão de 1959, causam protestos de detratores na plateia. Poucas cidades se dariam ao luxo de tal extravagância dentro do contexto econômico previsto para 2010, mas sucessivos prefeitos de Bonn têm discutido que a música seria a única maneira de salvar a cidade do ostracismo.

Dois projetos que enchem os olhos estão na disputa: uma edificação vazada em forma de piano, feita pelo arquiteto britânico de origem iraquiana Zaha Hadid, e um prédio em forma de onda, desenhado pelo escritório Hermann & Valentiny and Partners, de Luxemburgo. O resultado será anunciado antes do fim do ano e o novo salão deverá ficar pronto até 2013.

Bonn, tanto em sua arquitetura como em seu festival, tem rejeitado reciclar clássicos e seguir padrões. No próximo ano o tema, segundo a diretora do festival, Ilona Schmiel, será “Utopia”, uma inspiração para o sonho alemão tão prometido na época em que Bonn era a capital do país e que agora está revivendo em sua reconstrução.

Política e música não têm sido historicamente uma boa combinação para os alemães. Compositores, desde Wagner e Brahms até os lacaios dos tempos nazistas, conduziram sua arte para, de maneira ilegítima, propagar ideias de poder absoluto. Poucas peças causam tanto ódio quanto o Triumphslied, de Brahms.

Mas, quando o poder morre, tal como aconteceu em Bonn, a música pode fornecer outro tipo de orgulho, munida de um melhor senso de coletividade. Após deixar de ser a capital política, a cidade mais uma vez se voltou a Beethoven. E ele sempre foi sua melhor esperança rumo à posteridade.

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